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Quarta-feira, 10/3/2004
Olá, Lênin!
Daniela Sandler

Nostalgia pela Alemanha Oriental? À primeira vista, pode ser difícil entender por que alemães orientais teriam saudade da vida na República Democrática Alemã (RDA, nome oficial da Alemanha comunista). Mas a saudade existe, e é tão forte e ubíqua que tem até nome: “Ostalgie,” ou a nostalgia pelo Leste (Ost, em alemão). Assim como no romance de Proust, boa parte dos alemães orientais mergulha na idéia do passado e em busca de seu tempo perdido – em vez de madeleines, pepinos em conserva ou café ruim. Mas, se em O Caminho de Swann a torrente de memórias revividas pelo insuspeito bolinho é inesperada, na Alemanha de hoje, muito ao contrário, o efeito “mágico” é conscientemente buscado. Proliferam os produtos e embalagens reproduzindo gostos e imagens da Alemanha Oriental – café, pepinos, biscoito, chocolate, tênis, porta-ovos –, mas sua profusão é sempre insuficiente para saciar a avidez com a qual espera-se, em vão, o transporte ao passado.

Para quem viu o filme Adeus, Lênin, tudo isso soa familiar. Adeus, Lênin é ao mesmo tempo uma crítica e uma manifestação de Ostalgie – o que talvez explique seu sucesso (o filme ainda está em cartaz em Berlim, mais de um ano após seu lançamento). O filme torna palpável a ambigüidade e o caráter sentimental dessa nostalgia. A Ostalgie é uma mistura: de saudades da vida cotidiana e das experiências pessoais vividas durante a RDA; de reconhecimento de algumas vantagens do sistema comunista, como bem-estar social; de idealização de uma sociedade que hoje, defunta, parece bem melhor do que antes; e de uma decepção profunda com os resultados da unificação alemã, mais de treze anos depois.

Pepinos em conserva Spreewald

Memória afetiva

Em Adeus, Lênin, Alex, o protagonista, reconstrói um microcosmo da RDA para que sua mãe, convalescente, não sofra um choque ao perceber que o Muro caiu e a Alemanha comunista acabou. A invasão violenta do capitalismo, antes mesmo da reunificação (que ocorreu em 3 de outubro de 1990, quase um ano após a queda do Muro em novembro de 1989), transformara a vida cotidiana nos poucos meses em que a mãe de Alex permanecera em coma: móveis, roupas, comida, empregos, diversão. Alex se esforça para reconstituir nos mínimos detalhes esse mundo feito de objetos únicos, peculiares à cultura material da Alemanha Oriental durante o isolamento comunista – o papel de parede de florzinhas, a blusa bufante, os pepinos em conserva “Spreewald.”

No princípio é o seu amor pela mãe que o motiva a construir essa grande mentira – assim como o pai-protagonista em A Vida É Bela faz para proteger seu filho no campo de concentração. Alex é movido não apenas por preocupação, mas também porque não consegue separar a afeição que sente pela mãe da imagem que cria da RDA. O estado comunista representava o centro da vida da mãe – por conseguinte, ganha também para Alex carga emocional. E isso, a despeito de Alex ser crítico e ter desejo de mudança, o que o levara a participar das demonstrações contra o regime comunista em 1989 (a chamada “Revolução Silenciosa”, que desembocou na queda do Muro).

Para entender a Ostalgie é preciso então colocar lado a lado esses dois sentimentos – a memória afetiva e a postura crítica. Sua aparente contradição não é sinal de inconsistência de pensamento, mas sim de uma realidade em si contraditória. Alex tem consciência racional dos problemas de seu país, mas se apega emocionalmente ao tempo e ao lugar de sua história pessoal, à memória feliz da infância. É verdade que muitos alemães orientais sofreram na carne e na alma o horror do regime – prisões, tortura, punições, espionagem. Mas boa parte das pessoas, em especial a geração mais nova, diz ter sido capaz de separar sua vida particular da esfera política, como se essa fosse um fundo neutro.

Florena, o Creme Nivea da RDA

Adaptados o suficiente, devidamente escolados no “ideologicamente correto”, os jovens davam mais importância às relações pessoais e à diversão. Um exemplo é o rito de iniciação política chamado “Jugendweihe” (consagração da juventude). Criado pelos ideólogos comunistas para substituir a primeira comunhão cristã – já que religião não era vista com bons olhos –, e imbuído de simbolismo político em sua concepção, esse ritual de passagem virou para os jovens uma grande festa, ocasião de ganhar presentes e de concretizar a esperada primeira experiência sexual (algo assim como os bailes de formatura norte-americanos...).

Calor humano

Mas não apenas essa cisão explica a ligação dos alemães orientais com seu passado. A maioria das pessoas apreciava sinceramente muitos aspectos da sociedade comunista. A ausência do espírito de “salve-se quem puder” e da competição desenfreada da economia de mercado, combinada às inúmeras organizações de cunho social e político (associações de jovens, trabalhadores, etc.), tudo isso reforçava um espírito de comunidade. Alemães orientais relatam sentimentos de camaradagem, ajuda mútua, de comunhão e pertencimento a um grupo, em oposição à competitividade e isolamento da sociedade capitalista. Como a filósofa norte-americana Susan Neiman relata em Slow Fire, “as pessoas em Berlim Oriental pareciam mais calorosas que em Berlim Ocidental. (...) Mais gentis umas com as outras. Menos formais. Menos tensas. Todos os alemães ocidentais com quem conversei confirmaram essa impressão: era um fato estabelecido sobre a Alemanha Oriental.”

Sinal de travessia de pedestre da Alemanha Oriental

Além disso, o Estado oferecia benefícios concretos: segurança de emprego e de moradia, saúde, educação, creches, orquestras e teatros excelentes. Jovens casais recebiam apartamento próprio para começar a vida. Toda mulher com filhos com menos de dezesseis anos podia trabalhar um dia a menos por semana, se quisesse voltar a estudar. Muitos dos críticos do regime comunista não propunham sua substituição pelo capitalismo, mas uma reforma interna que preservasse a segurança social e eliminasse o autoritarismo político. Liberdade de expressão, de ir e vir, democracia: o chamado “socialismo com um rosto humano.” É esse socialismo melhorado que Alex termina por construir em Adeus, Lênin: como ele mesmo admite, uma Alemanha Oriental quase perfeita, que nunca existira a não ser em sua própria imaginação.

A Ostalgie, assim, não é simplesmente uma saudade pessoal, privada; nem pode ser reduzida à idealização ingênua e fácil do passado. Ainda que esses aspectos estejam presentes, a Ostalgie tem também algo de utópico: o desejo de uma outra sociedade, melhor que as alternativas existentes. Uma sociedade fundada na experiência socialista, mas transformada em algo novo pelo poder criativo de seu povo – poder que é representado no filme pela imaginação de Alex.

Daí o apelo da história da RDA, que atrai não apenas alemães orientais, mas seus compatriotas ocidentais – e muitos estrangeiros. Departamentos universitários, cursos, conferências, publicações, até mesmo uma exposição de arte estilo “blockbuster” sobre a “Arte na RDA” indicam curiosidade e abertura. Essa atitude ainda convive com preconceito e desprezo de muitos ocidentais que consideram a Alemanha comunista um erro histórico, e que vêem os alemães orientais como atrasados e eternos insatisfeitos.

Conjunto habitacional em Berlin Leste

Dinheiro e poder

Mas a curiosidade benévola não é o único motor do sucesso da Ostalgie. O comércio de produtos orientais é um filão crescente – produtos originais são vendidos em mercados-de-pulga e leilões eletrônicos, e novas edições de roupas, artefatos e comidas são comercializadas por lojas e web sites. Virou moda morar nos conjuntos habitacionais de Berlim Oriental, os “Plattenbauten” – prédios de concreto antes desprezados por serem frios, impessoais, e pelos pequenos apartamentos. Agora são cobiçados por jovens artistas e arquitetos, que fazem questão de mobília de época e inflacionam o aluguel. Programas de TV documentam a vida cotidiana na RDA e mostram trechos de shows originais. Em 2003 a série O Show da RDA foi sucesso de público; na mesma época foram anunciados planos para um parque temático da RDA. Adeus, Lênin é apenas o mais famoso de uma safra de filmes sobre o período.

Há, finalmente, a dimensão política da Ostalgie. A Ostalgie, como mencionei antes, é em parte fruto da insatisfação com os efeitos da unificação. No início de 1990, os alemães orientais haviam votado em um plebiscito pela união com a Alemanha Ocidental, em grande parte graças ao carisma do então chanceler Helmut Kohl. Era empolgante a visão de uma Alemanha forte e una, finalmente livre do peso do passado (a divisão fôra, afinal, conseqüência da derrota na Segunda Guerra; a união significaria superar essa condição de “derrotado”).

Essa visão combinou-se à sedução do consumo e do mercado livre. Quando o Muro caiu, os alemães orientais foram recebidos com festa nas ruas de Berlim Oeste; os alemães ocidentais ofereciam champagne e frutas tropicais. Cada alemão oriental ganhou 100 marcos do governo ocidental para gastar como quisesse. As vitrines de Berlim ofereciam um mundo novo e copioso de produtos inéditos, neons, luzes brilhantes. Esse brilho foi ainda mais aguçado pelo fato de a Alemanha Oriental em seus últimos anos vir arrastando um Estado à beira da falência econômica, com fábricas obsoletas, crise produtiva e desemprego (disfarçado nas estatísticas oficiais). Não é difícil imaginar que, para a maioria dos alemães orientais, a união com o vizinho forte – a maior economia européia – representasse a promessa de prosperidade, passaporte direto para o primeiro mundo.

O processo, é claro, não foi suave. Ainda que a Alemanha Ocidental tenha destinado boa parte de sua arrecadação para modernizar a infra-estrutura dos estados orientais, a revitalização econômica é um processo difícil e o leste alemão é a zona mais pobre do país. Além disso, muitas firmas ocidentais participaram de forma predatória na privatização das empresas da RDA, sem se preocupar em conservar os empregos das populações locais (alguns autores, como o escritor e prêmio Nobel de literatura Günter Grass, chegaram a falar de “anexação” ou “colonização.”)

A insatisfação crescente nos estados orientais da Alemanha tem sua expressão política no fortalecimento do PDS (Partido do Socialismo Democrático). O PDS tem sua origem no partido único da Alemanha comunista, o SED (Partido da União Socialista), o que motivou o descrédito de muitos comentaristas ocidentais, que consideravam o PDS um dinossauro com dias contados. Mas o partido ganhou representatividade no fim dos anos 90. Seu eleitorado, basicamente oriental, é movido pelo sentimento de que nenhum outro partido representa os interesses do leste alemão. Assim como a Ostalgie, há mais por trás do sucesso do PDS do que o simples desejo de ressuscitar a RDA. Em face de tendências como o recrudescimento do Neonazismo nos estados orientais, é mais sábio levar a sério a complexidade de fenômenos como o PDS e a Ostalgie, em lugar de descartá-los como nostalgia pura. Antes ouvir “Olá, Lênin” do que “Olá, Hitler.”

Sinal de travessia de pedestre da Alemanha Oriental

Ostlinks

Para quem tem curiosidade, os web sites a seguir oferecem mais dados e imagens. No site oficial do PDS pode ser lido o programa do partido, em inglês. O Centro de Documentação da Cultura Cotidiana na RDA (Dokumentationszentrum Alltagskultur der DDR) contém informações sobre o tema, como exposições atuais e passadas, publicações e sua coleção própria (mesmo para quem não lê alemão, as imagens podem ser interessantes). Produtos da RDA – alimentos, produtos de limpeza, roupas – ou que celebram sua memória, como camisetas, jogos de tabuleiro e brinquedos, são vendidos pelo site Ostprodukte (Produtos do Leste).

Daniela Sandler
Berlim, 10/3/2004

 

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