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Quarta-feira, 17/3/2004
Ainda a insustentável leveza do cérebro feminino
Ana Elisa Ribeiro

Faz pouco, já no século XXI, um amigo - desses que parecem cavalheiros - me agraciou com um cumprimento mui gentil, bicotando meu rosto e parabenizando pela publicação dum texto numa agência da Internet. Mantive o rostinho sorridente e disse a ele que, sim, "de vez em quando acontece". E então me atacou esta modéstia mineira, mui falsa e mui pretensa, que fomos educados para demonstrar sempre que vem um elogio explícito.

O rapaz, interessado no assunto, resolveu tecer perguntas que mais pareciam questões de concurso: sobre escrever, sobre gramática, sobre dificuldades da língua e todos aqueles clichês tolos - que têm a função de detonar a auto-estima dos aprendizes do vernáculo escrito.

Depois de muito ouvir e sorrir respondendo parca e preguiçosamente aos aprumos lingüísticos do amigo, ele tocou num tema que me deixa arrepiada e vermelha: mulheres que escrevem. Veio ele, louro e lindo, dizer que eu era corajosa por escrever em público, ao que respondi, dissimuladamente, conforme lições da mestra Capitu, que escrevia sempre trancafiada em meu escritório, um ambiente calmo e mínimo, que muito me agrada. Então, pois sim, não escrevo em público.

Ele, risonhamente, me disse, então, que não "fingisse de égua" - expressão que nós, mineiros, adoramos. Queria dizer que eu era corajosa por escrever textos sobre temas como sexo e paixão e dá-los a ler a várias, diferentes e desconhecidas pessoas. (O que, para ele, devia constituir ato semelhante a atear fogo às próprias vestes ou atirar-se do edifício Acaiaca.)

Sorri mineiramente, mocinha demais, e disse a ele que gostava muito de escrever, que expunha pontos de vista, às vezes perspectivas incomuns, outras vezes besteiras, mas que gostava da responsabilidade de publicar meus textos. E podiam ser eles sérios, outras vezes podiam ser galhofas. Ao que o amigo, tonto e surpreso, perguntou: "Mas você assina seu nome?", perplexo e brutal.

Sob a carapaça moderna e prateada, surgiram os ecos dum machismo estagnado e coliforme. Até mais ou menos a década de 1950, raríssimas mulheres assinaram seus nomes sob textos quaisquer, quanto mais sob polêmicos. Minha mãe era oprimida pelo poder de polícia de minha avó. Ler Olhai os lírios do campo podia significar punições horrendas. Durante a faculdade, livros de Marx, nem pensar! E eu, esta enferma social, não sabia bordar e ainda publicava textos pincelados com meu nome!

Além do nome, deixava tricotado o sobrenome de meu pai, digno e respeitável macho de casta pobre e mineira, estudioso e sisudo, descendente de cristãos novos e negros, e que, para ser mais rígido, só faltava ser religioso. Segundo a premissa da pergunta de meu amigo, seria mais prudente que eu inventasse logo um pseudônimo que despistasse os leitores e resguardasse minha intimidade.

Não disse a ele nem mais nem menos. Contentei-me com a idéia de que o rapaz não era mesmo um leitor muito assíduo. E então reclamava sem razão, já que nem sequer usuário seria dos meus manuais de absurdos. Mas eu quis dizer a ele, e não disse, que inventasse uns pseudópodes e fosse caminhar, lustroso e machão, pelas esquinas do século passado.

Rodada summer draft
Amei primeiro Eduardo. Mas ele morreu de acidente. Viajou sem mim pra Guarapari e caiu com o Fusca numa ribanceira. Esmagou-se inteiro nas ferragens dum São Geraldo modelo velho. Sem a menor categoria. Senti saudades dele por umas semanas, depois Eduardo se tornou um retrato 3 por 4 dentro duma carteira que dei pra um bazar de usados.

Amei menos Daniel. E ele morreu de tiro. Foi ser polícia em Sete Lagoas e correu atrás duns marginais. Rodopiou com o carro pela estrada, saiu correndo pela colina, foi atingido pelas costas. Duas perfurações certeiras no coração. De brinde, mais uma na cabeça. Fui ao enterro mas não fiz cara de viúva. Me chamaram de fria. Beijei o cadáver na boca. Me chamaram de sinistra. Quis que o cremassem pra eu ficar com a urna. Me chamaram de soturna. Enterraram Daniel junto com as tias que morreram de parto. E Daniel virou umas alianças de prata no meu porta-jóias de craquelê.

Amei outro Eduardo. Este morreu de choque. Tocava guitarra, som alto. Choveu pela janela e ele não viu. Estorricou-se desde os dedos. Caiu morto de repente. Dizem que chegou a gritar o nome do Hendrix. Fui ver o corpo carbonizado. Apelei pros orixás. Me chamaram de louca. Pé frio. Dei de ombros. Eduardo tinha sido o primeiro.

Alexandre morreu de cárie. Teve um abcesso. Uma septicemia invadiu-lhe as entranhas. Dizem que havia escapado de dois tiros no pescoço, mas daquele abcesso não escaparia. Acompanhei tudo de perto, ia ao hospital todos os dias. Levei flores duas vezes, quando achei que não mais o veria. E estava errada. Me chamaram de azarada. Dei de ombros. Alexandre deixou a cárie tomar conta. Morreu com os dois incisivos podres e um chifre, como um unicórnio, mas muito doce.

Bruno foi festejado. Morreu de aneurisma. Estourou a veia bem na hora em que ele ia me dar na cara. Plantei nele as palmas dos meus olhos, arregalados, apavorados. Nunca havia apanhado de homem antes, a não ser do meu pai. E antes de a porrada pegar, Bruno caiu duro, teso, lesado. O chão não se abriu. O aneurisma foi detectado no IML. Fui ao enterro desconfiada. Me chamaram de culpada. Dei de ombros. Chutei os joelhos da irmã caçula dele. E Bruno foi festejado. Tomei uma vodca pra comemorar o tabefe que não levei.

Daniel me assombrou numa noite. Apareceu diante da minha cama, dizendo que eu ainda lhe devia qualquer coisa. Ofereci meus cornos, minhas palmas, meu traseiro. Não era nada disso. Depois disse a ele que gostaria de repetir a dose. Ele veio incisivo, meteu as duas mãos na minha cintura e disse que não voltaria mais se eu me oferecesse daquela maneira. Me chamou de vulgar. Dei de costas. Fiquei chateada. Achei Daniel machista. Onde será que ele aprendeu isso?

E mais um Eduardo morreu de acidente. Caí na cama dele sem perceber. Ele deixou o aparelho de DVD cair dentro do ofurô em que tomava banho de sais. Fiquei vendo a água vermelha escorrer pelo chão do banheiro. Peguei o avião de volta pra São Paulo. Deixei o cadáver lá. Disseram que havia uma mulher com ele. Nunca chegaram a mim. Fiquei quieta, pensando que me encontrariam se investigassem minhas impressões digitais na cabeceira da cama, na porta do banheiro, nas costas de Eduardo. Mas nunca me encontraram. E eu nem cheguei a ir ao enterro.

Gustavo me apareceu veloz. Deu a cantada, caí. Mas disse que estava de passagem. Estapeei o cara e dei o fora. Não era minha intenção que alguém me amasse. Queria apenas que ele morresse em paz. Morreu num quinto dia útil do mês, mesmo dia em que costumo receber meu salário. Não tive tempo de ir ao velório porque fiquei presa na fila do banco. Me chamaram de vingativa. Dei de ombros. Nada a ver. O caso dele era suicídio. Pulou do prédio da Faculdade de Direito. Ficou interessante o desenho do cadáver, a giz, no chão da avenida. Guardei uma foto de lembrança.

Fábio apareceu no estacionamento do McDonald's, num carro preto, seminovo. Disse que me queria naquela hora. E voltou pro Rio de Janeiro sem nada na bagagem. Recusei todas as suas investidas, não cedi a nenhuma cantada, nem quando ele ficou nu no meio do pátio do presídio. Deixei uns pães de queijo, uma lata de coca-cola com um 38 dentro. Acho que foi com essa arma que deram nele as coronhadas.

Próximo, por favor.

Ana Elisa Ribeiro
Belo Horizonte, 17/3/2004

 

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