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Sexta-feira, 26/3/2004
O lugar certo
Eduardo Carvalho

A sensação de morar em São Paulo

Chega de festas forçadas e de obras desnecessárias: a cidade de São Paulo está totalmente dominada pela mais cruel bandidagem, e é muito incômodo observar que - das vítimas às autoridades - o assunto tem sido sistematicamente desprezado. Claro que, de vez em quando, os jornais se dedicam ao assunto, os políticos lançam novas estratégias, enquanto a população, quando perguntada sobre o que a incomoda, cita a violência em primeiro ou segundo lugar. Mas isso não é nada. Ou, pelo menos, é muito insignificante, como proposta ou resultado, se considerarmos o absoluto estado de terror em que a situação chegou. A cidade não está em guerra, como querem ou anunciam alguns. Ela está é sendo tranqüilamente invadida por assassinos alucinados, que não encontram quase nenhuma resistência - nem civil nem militar - à escolha que fizeram para ganhar a vida.

Nenhuma área de São Paulo está imune à brutalidade dessa covardia. Um executivo foi assaltado, na semana passada, dentro do estacionamento em que paro o carro, na esquina da R. Tabapuã com a Av. Nova Faria Lima, quando saia do Faria Lima Financial Center, o mais moderno edifício comercial da cidade. Há um mês, aproximadamente, ali ao lado, na R. Iguatemi, outros dois motoqueiros-assaltantes foram baleados, na hora do almoço, durante uma perseguição policial. O prédio em que um amigo mora, aqui em Higienópolis, foi invadido em janeiro, e vários andares foram saqueados. A professora de ginástica da Sociedade Harmonia de Tênis, no Jardim Europa, foi, também há uma semana, assaltada e estuprada quando saía do clube, numa rua em que todas as casas têm câmeras de vigilância. Uma amiga, que mora no Jardim Paulistano, foi proibida de sair de casa depois das 18hrs., porque duas amigas e seu motorista já foram assaltados na porta de sua casa, numa rua aparentemente tranqüila. E esses são todos, veja só, acontecimentos próximos e recentes, suficientes para uma curta ilustração - ou eu reservaria colunas citando outros exemplos.

A violência é o mais grave defeito que um centro urbano pode ter. Todos os outros - a feiúra das construções, o trânsito engarrafado, a poluição do ar, etc. - podem ser compreendidos ou tolerados, havendo qualidades que compensem esses problemas - atividade comercial e cultural, proximidade dos amigos, clubes convenientes, etc. Mas é completamente impossível viver satisfeito numa cidade em que o risco de ser baleado ou estuprada seja tão grande. Um investidor de sucesso sabe que certos riscos não se podem correr, mesmo que a expectativa de retorno seja infinitamente alta. E, vivendo em São Paulo, são esses riscos - de perda total - que todo dia estamos assumindo.

A tomada da cidade de São Paulo pela bandidagem organizada - e desorganizada também - é explícita e praticamente oficial. As vagas nos quarteirões em volta da PUC, em Perdizes, e da FAAP, no Pacaembu, à noite são reservadas - com caixas e cones - por assaltantes assumidos, sustentados mensalmente pelos próprios estudantes. (Alguém acha que eles não estão armados? E quem são esses estudantes - os mesmos que depois fazem passeatas pela paz?) O Ibirapuera, onde eu poderia fazer meus treinos de bicicleta, está rodeado por trombadinhas, que levariam a minha depois de um empurrão. E ninguém - nem as vítimas nem as autoridades - faz nada. Parece que há um charme em viver assim: um certo orgulho do aluno roubado em se sentir "brother" do provável assassino que guarda o seu carro. E todas as pontas se amarram: a ingenuidade maliciosa do estudante, que acha que é malando enquanto está sendo assaltado; a corrupção das autoridades, que muito provavelmente embolsam seus trocados para fingirem que não vêem; e a picaretagem do "maluco" da periferia, que recolhe suas mensalidades para torrar em roupas e drogas.

A única esperança numa situação dessas é quando ainda existe, na cidade, uma elite lúcida - política, cultural e econômica -, que se oponha a esse ciclo criminoso, com propostas firmes e eficientes. Onde está ela? Geraldo Alkmin se esforça, comprando carros e equipando a polícia, mas - mesmo que isso tenha algum efeito imediato - é uma solução paliativa. (Quando, aliás, vão municipalizar a segurança neste país?) O que consideramos elite cultural, no Brasil, meteu-se numa viagem intelectual intergaláctica, e não voltará viva. Emir Sader, para se ter uma idéia, professor da USP e guru da molecada da PUC, acredita que uma organização secreta do governo norte-americano pode ter explodido os trens em Madri. E Antônio Ermírio de Moraes, numa entrevista recente, anunciou que a violência em São Paulo é "exagerada", já que ele nunca foi assaltado. (Por que, então, muros tão altos protegendo sua casa? Porque é bonito?) Como conversar com essa gente? Impossível. Merecem a cidade em que vivem. Por mais errado que o lugar esteja, certas pessoas nasceram no lugar certo.

Um palhaço erudito

Li recentemente, atrasado - deveria ter lido antes -, Chatô - O Rei do Brasil, o tijolo que Fernando Morais escreveu sobre Assis Chateaubriand. A leitura é de fato indispensável, por dois motivos: Chateaubriand foi provavelmente o brasileiro mais influente do século XX, talvez mesmo acima de Getulio Vargas e Juscelino; e Fernando Morais soube traçar com nitidez a personalidade do biografado, antes de misturar sua opinião aos acontecimentos que narra.

Chateaubriand foi um palhaço erudito. Sua formação autodidata, como leitor voraz e colecionador de livros na adolescência, impressiona. E é determinante para o seu - se se pode dizer assim - sucesso posterior. Goethe o ensinou a aproveitar ao máximo os prazeres da vida. Nietzsche foi sua referência em moral. É uma combinação perigosa. E, em jornalismo, o polêmico Carlos Laet - tataravô dos meus primos, sobre quem devo uma nota - foi sua principal influência. A esse triângulo soma-se a inesgotável energia de Chateaubriand, e seu excêntrico senso de humor, e isso basta para virar um país frágil como o Brasil de ponta cabeça, chacoalhá-lo pelos pés - e depois pegar as migalhas que caíram do seu bolso.

Chateaubriand fez o que quis com o Brasil. Tudo bem: ele era inteligente e habilidoso, mas não justifica. Não é apenas pela curiosidade sobre a vida de Chateaubriand que Chatô merece ser lido. É também pela detalhada demonstração de como o Brasil foi - é? - um país institucionalmente fraco, vulnerável à imposição dos caprichos de um engenhoso megalomaníaco. Suas extravagâncias, num país politicamente organizado, teriam sido barradas por leis e homens decentes - e restaria sua força empreendedora. É por isto que não escolhemos Chateaubriand como herói nacional: porque ele expôs o Brasil a um insuportável ridículo, logo quando o país queria se mostrar sério.

Dom Helder Câmara foi quem, curiosamente, melhor definiu o dono dos Diários Associados: "De Chateaubriand se pode dizer o melhor e o pior. Haverá quem diga horrores pensando nele, mas como não recordar as campanhas memoráveis que ele empreendeu? Dentro do maquiavélico, do chantagista, do cínico, o Pai saberá encontrar a criança, o poeta. Deus saberá julgá-lo". É por aí: mas o Brasil se nega a aceitar as qualidades de um homem que tanto o confundiu.

A criança e o poeta somados, aliás, dão nisto: num palhaço mesmo, mas - no caso de Chateaubriand - num palhaço que escrevia maravilhosamente bem. Dificilmente há alguém, no Brasil, que conheceu e usou tantos adjetivos depreciativos diferentes. E poucos jornalistas conseguiram escrever com uma prosa tão ágil e tão forte. A coleção dos seus 11.870 artigos possivelmente não servirá de leitura para um curso de ética jornalística. Mas deveria pelo menos ser indicada a certos novatos em redação, que - perseguindo interesses às vezes pessoais também - nem sequer aprenderam a expressá-los com beleza.

Eduardo Carvalho
São Paulo, 26/3/2004

 

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