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Sexta-feira, 2/4/2004
Max Weber desencantado
Daniel Aurelio

Fevereiro de 2002. Nada de carnaval: era, pois, meu primeiro dia de aula na faculdade. Como esquecer? Sensações que variavam da mais cândida euforia militante àquela agitada timidez. Um generalizado estado de desconforto. Nas apresentações, todos manifestam entusiasticamente suas biografias, expectativas e apaixonadas odes à "grande utopia" (é sério: eles queriam mudar o mundo). A maioria alinhava-se num pelotão de cabos eleitorais atrás de qualquer cargo-farelo em subprefeitura (como se isso não fosse dedutível pelas suas estampas de Che Guevara e Bob Marley). O resto caíra de pára-quedas.

Então, chega a vez de um rapaz magro, enfiado em um terno para lá de bem cortado. A professora interpela-o, entediada: o que te levaste à sociologia, meu filho? Sua resposta foi uma rajada: "Conhecer mais Max Weber". Naquela sala viciada pela clássica literatura de esquerda, espanto e alguns risos. "Aquele liberal", alguém fustigou, do fundo de seu coraçãozinho vermelho. Ele queria mudar o mundo, coitado. O rapaz do terno bonito recebeu seu carimbo de "neoliberal" e era desdenhado a cada intervenção que insinuava. Não resistiu ao primeiro ano.

Março de 2003. Transcorridos dois anos do episódio, aqui estamos no terceiro ano. Quase formados, portanto. E Weber é aclamado como o mais amplo, dinâmico e ambivalente cientista social de todos os tempos. As razões são muitas. Weber, por exemplo, não era um especialista em encíclicas, mas ninguém estudou a religião como ele; explicou ainda com primor as motivações do indivíduo na modernidade, embora não se metesse ao divã, somente depois consagrado por Freud; sem jamais ter sido um típico politólogo, foi Weber pilar teórico da democracia representativa.

A dislexia moral é um mal que poda o leitor. A indústria editorial fatura milhões com tal teimosia. Como ousar debater os males e virtudes do mundo moderno sem conhecer o autor de Economia e Sociedade e tantos outros ensaios vanguardistas? Os apanágios e vacas-de-presépio partidários deram no pé. Os que ficaram finalmente puderam racionalizar a sua indignação (continuam combativos como devem ser, mas cientes da natureza do nosso ofício). Nada como o tempo e um pouco de leitura adequada.

Natural de Eifurt, cidadela da ascente Alemanha do pré-guerra, Karl Emil Maximiliam Weber (1864-1920) era antes de tudo um sujeito talhado. Filho de um cacique do Partido Liberal germânico, habituou-se desde meninote ao convívio híbrido de filósofos e burocratas, diplomando-se em Direito, História e Economia. Dedicou a vida ao ensino acadêmico e a uma privilegiada produção intelectual, que inclui aquele que é considerado (com acerto) o mais importante livro não ficcional do século XX, A Ética Protestante e o espírito do capitalismo (1904). É impossível resistir a analogia com outro filho de político ilustre, o nosso Joaquim Nabuco - esse último o autor do monumental ensaio-manifesto O Abolicionismo (1883).

Uma mente distraída que tope com o título maior da sociologia weberiana logo pensa tratar-se de um livro teológico. Sinal invertido, sinal invertido. Weber versa sobre a transmutação do sentido da religiosidade, aquele sentimento antes servil à arte e ao desapego - tão caros ao papado e a sociedade de corte - e que passava a despejar sua fé & suor em linhas de produção. Em nome de Deus (chame-o de Consumismo se preferir) fomos trabalhar até o limite de nossas forças.

Max Weber cunhou algumas expressões famosas, todavia nenhuma equivaleu ao seu Entzauberung der Welt, ou Desencantamento do Mundo, termo que virou até chavão de cidadão acabrunhado, tristonho da vida. As aberrantes disparidades na análise dessa verdadeira pedra angular do pensamento de Weber, se por um lado mostram o seu poder de alcance, igualmente contribuem para a difusão de um mau conhecimento. E é Antonio Flávio Pierucci, professor da USP e ativo colaborador do caderno "Mais" da Folha de São Paulo, quem se propôs a colocar ordem no caos, com aquela segurança e deboche de quem é resoluto e seguro do que escreve. E publica agora, pela Editora 34, o resultado desse esforço, batizado O Desencantamento do Mundo.

Chega a ser sacanagem desnudar cada ponto alto da obra; é preciso saboreá-lo a cada página (lembre-se que este prato é para ser sorvido apenas por iniciados). Não é qualquer um que, partindo de falhas de tradução e discussões até então soberanas, reconstrói todo o movimento de uma escola teórica. Sua apresentação é de uma humildade e desprendimento poéticos. Mal dá para saber que, dali a alguns parágrafos, estaremos diante de uma grande obra. O capítulo introdutório, por sua sorte, é uma aula de como se deve fazer ciência: Pierucci lapida lentamente a expressão, corrige olhares precipitados e com isso vai de encontro a síntese lógica de Weber. A humanidade "perde o encanto", a magia, encontra a racionalidade, ilumina-se, cai na burocracia e na individualização até perder-se em outros erros. O mercado é dos especialistas. E os especialistas querem o mundo (mas se contentam com o carro do ano, dentre outras regalias).

Um detalhe no livro, mais do que qualquer outro, salta à vista: o método de Pierucci acaba sobrepondo-se ao próprio objeto estudado. É um estímulo para nós graduandos. O livro arma-se dos valores que deveriam compor qualquer compêndio do gênero: consistência e clareza. A propósito, serve também como uma lição aos fascistazinhos travestidos de revolucionários: sob pena de repousarem no ridículo, que nunca mais confundam sociologia com socialismo.

Para ir além





Daniel Aurelio
São Paulo, 2/4/2004

 

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