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Terça-feira, 13/4/2004
1964: entre o passado e o futuro
Fabio Silvestre Cardoso

Brasil, 1º de abril de 1964. Com o exército nas ruas, o País estava prestes a conhecer mais a "página infeliz de nossa História". O desenrolar desse triste enredo todos conhecemos. Após o golpe de 1º de abril, houve o golpe dentro do golpe, em 1968, com o AI-5, que provocou um verdadeiro acinte contra as liberdades civis, com torturas, prisões e mortes dos dissidentes políticos. Quem deseja conhecer esses acontecimentos com detalhes, basta encarar os três volumes da até agora trilogia das Ilusões Armadas, de Elio Gaspari. No entanto, o tema ainda não está completamente esgotado. Não tanto pela perspectiva histórica, mas sim pelo presente, pois, se analisarmos de perto, o golpe de 40 anos atrás deixou marcas que ainda são perenes na nossa sociedade, embora muitos tentem negar isso à exaustão.

Que fique de fora a análise política, assim como qualquer pendenga entre os desenvolvimentistas e os conservadores na seara da economia. Falemos sobre cultura. No Brasil pós-64, a produção cultural ficou, para o bem e para o mal, estigmatizada pela repressão. Mesmo quando o País já vivia sob a ordem democrática, a partir de 1985, todas as artes tinham uma espécie de dever para com o passado. Pior do que isso: esse bloqueio não foi superado. Como conseqüência, volta e meia os sobreviventes dos anos de chumbo sentiam-se, e ainda se sentem, compelidos a externar seu engajamento político nas suas obras.

Assim, mais do que expressar qualquer interesse pelo Belo, os movimentos artísticos subseqüentes ao Golpe de 64 tinham como objetivo denunciar a condição sob a qual o país vivia. Foi assim com as artes visuais, destaque para o movimento conceitual (com suas mostras temáticas e instalações) e para o cenário musical (os festivais ficaram marcados pelas canções de protesto), para citar dois exemplos mais diretos. Contudo, ainda hoje, nota-se uma certa ressonância desse período na literatura, por exemplo, com a predileção dos novos autores em abordar a violência, que era exacerbada no país nos anos mais duros de repressão, como tema principal. Tem-se a impressão que a "estética da violência" tornou-se arquétipo necessário para a descrição de qualquer personagem urbano no Brasil.

Com isso, também a análise teórica (teoria crítica?) teve seu ponto de virada. Aliás, ressalte-se que o mote da vez era ruptura, tanto para os criadores quanto para os críticos. Nada mais valeria a pena ser analisado se não fosse quebrado seu elo para com as vanguardas já estabelecidas. Era "proibido proibir", como dizia a canção. O objetivo era rejeitar tudo aquilo que representava um padrão a ser seguido, pois, segundo essa análise, era um modelo estabelecido de maneira não democrática e que perpetuava, ou reproduzia em outras camadas, um regime ditatorial.

Os intelectuais, por sua vez, a partir desse golpe tiveram sua participação supervalorizada no país, muito graças à perseguição de que muitos (?) foram vítima durante a repressão. Desse modo, qualquer posicionamento, por mais estapafúrdio que seja, tende a ser levado a sério pelo seu séqüito. Exemplo disso foi bem anotado por Eduardo Carvalho, também colunista do Digestivo, a respeito da posição de Emir Sader sobre os atentados terroristas na Espanha em 11 de março. Essa é apenas uma das muitas "teses" produzidas pelos intelectuais bruzundangas, que, no fundo, se mostram muito mais apaixonadas do que fundamentadas em teoria. Nota-se, ainda, que não existe neste cenário um intelectual que não se afirme de esquerda. E, num discurso comum, todos bradam contra "o grande capital, personificado pelo imperialismo ianque."

Enquanto isso, na imprensa, nota-se que, apesar da repressão, sobrou muito jornalista para contar a mesma história da Ditadura. Em certa medida, os leitores percebem um fenômeno comum: os mesmos relatos são recontados ano após ano, mas sem qualquer novidade. Talvez o grande mérito dos livros de Elio Gaspari esteja justamente aí: apresentam um arquivo que era desconhecido do grande público e que, com o auxílio de outros livros, dão outro panorama do período. No mais, nada de novo sob o sol. Os jornais até que tentaram, mas trouxeram novidades velhas, conforme escreveu o jornalista Ricardo Setti no "Nominimo". Afora isso, é preciso lembrar, como disse Mino Carta em entrevista ao site da AOL, que a grande imprensa se mostrava favorável ao golpe militar naquela época. Com efeito, é uma página que os jornais preferem deixar de lado, ressaltando apenas sua oportuna participação nas Diretas-Já.

O Brasil ainda não superou de todo o que aconteceu naquele primeiro de abril. E não é por falta de memória, como gostam de acusar alguns. O grande entrave, ao que parece, é a impossibilidade de pensar no futuro sem se ancorar na mitologia que envolve o Golpe. Um grande passo para mudar esse cenário é ouvir com atenção uma das letras de Chico Buarque, que serve, aliás, até hoje como "canção de protesto". "Apesar de você, amanhã há de ser outro dia".

O amanhã já chegou.

Fabio Silvestre Cardoso
São Paulo, 13/4/2004

 

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