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Sexta-feira, 23/4/2004
Armandinho, o subversivo, versus o Cabeça de Melão
Lisandro Gaertner

Toda vez que os pais de Armandinho brigavam era a mesma coisa. Batendo papo no café da manhã, um deles tocava num assunto que desagradava ao outro e pimba. As farpas começavam a voar pra todo lado e, finalmente, "pelo bem do Armandinho", quem iniciou a discussão falava: "Deixa pra lá, não vamos discutir".

Dessa vez foi diferente. Fernando, o pai de Armandinho, como quem não quer nada, comentou à mesa do café:

- Marlene, arruma o Armandinho que hoje eu vou levar ele numa solenidade.

Marlene se espantou:

- Solenidade? Que solenidade?
- Ora, hoje é o aniversário do Colégio Militar e o Figueiredo vem para a festa.
- Como é? Você vai levar o meu filho para babar o ovo dos milicos?
- Marlene, não fala assim na frente do Armandinho.

Marlene olhou para o seu filho, tirou a expressão de indignação da cara, sorriu forçado, passou a mão na cabeça do garoto e disse:

- Filho, vai para o seu quarto que eu quero conversar com o seu pai.

Armandinho, do alto dos seus cinco anos, suspirou como se estivesse cansado da vida, pulou da cadeira, foi para o seu quarto e fechou a porta. Quando começou a ouvir novamente a discussão, colou a orelha na porta para não perder nenhum detalhe. Afinal, sua mãe lhe pediu para ir para o quarto e não para não ouvir a discussão.

- Ô, Marlene, essa tua mania de subversiva já tá cansando - disse Fernando.
- Tá cansando? O que tá cansando é essa sua mania de babar o ovo da revolução. Você esqueceu que estamos em 1982? A anistia já começou, meu querido. Desde de 79 a anistia já começou.
- Infelizmente...
- Como é?
- Nada, Marlene, deixa pra lá. Olha, eu vou levar o meu filho para a solenidade e pronto.
- Vai? Por quê?
- Ora, porque eu sou ex-aluno do Colégio Militar e quero rever os meus amigos.
- Você quer é ficar batendo continência e enaltecendo essa ditadura de merda.
- Como eu vou bater continência? Eu nem sou militar.
- Mas queria. É, a tua reprovação no teste de admissão nas Agulhas Negras não te dá sossego mesmo...

Fernando, sentindo o peso da verdade, suspirou e ficou quieto por alguns momentos. Sem saída, ele resolveu jogar pesado:

- Marlene, se lembra que semana passada você levou o Armandinho para um comício?
- Levei, sim. Levei ele para o comício do Brizola.
- Ai, por favor, não fala esse nome aqui em casa.
- Que nome? Brizola? Por que eu não posso falar BRI-ZO-LA? Hein?
- Marlene, não vamos piorar a discussão. Você levou o Armandinho pro tal comício e eu não disse nada. Disse?
- Não. Não disse - Marlene lamentou.
- Então, por favor, não cria caso e vai arrumar o menino.

Armandinho tirou a orelha da porta segundos antes de sua mãe abrí-la. Marlene entrou no quarto, e, procurando uma roupa o armário do filho, só de provocação, perguntou para Fernando:

- Olha, o uniforme verde oliva dele tá lavando, será que ele pode ir de bermuda?

* * *

Armandinho e seu pai pegaram o metrô. "Mais uma excelente obra do governo militar, meu filho", Fernando repetiu pela milésima vez. Saltaram na estação São Francisco Xavier e foram caminhando até o Colégio Militar. Na porta, um grupo de manifestantes, contidos pela PE, gritavam pedindo por eleições diretas, agora para presidente. Fernando, no automático, tampou os ouvidos do filho e entrou no colégio.

Lá dentro, eles cumprimentaram alguns conhecidos de Fernando, se acomodaram numa das estruturas metálicas que serviam de arquibancadas, e se preparam para assistir à parada. Nisso, apareceu o presidente.

- Olha o presidente, meu filho.

Armandinho, esticando o pescoço, tentou ver ao vivo o homem que sua mãe odiava tanto, mas não conseguiu.

- Viu o Figueiredo, filho? - Fernando perguntou.
- Vi, papai - Armandinho mentiu.

A solenidade começou e Armandinho assistiu com atenção todos aqueles cavalos, soldados e máquinas de guerra passando. A todo momento, Fernando o chamava para dar uma explicação ou fazer uma pergunta. "Esse é tal carro de guerra, viu?, essa é tal divisão, olha só os cavalos!, o carneirinho mascote do colégio não é bonitinho?, quando você crescer, vai estudar aqui, não é, filho?". Cansado de tanto falatório, Armandinho balançava a cabeça para tudo.

A parada acabou e um militar, amigo de seu pai, se aproximou:

- Oi, Fernando. Você por aqui?

- Pois, é. Vim trazer o garoto para ver a solenidade.
- Fez bem. Fez bem. Vim aqui te fazer um convite
- Qual?
- Você quer conhecer o presidente?

Os olhos de Fernando brilharam. Essa era para ele uma oportunidade de ouro. Que outra chance ele teria de levar o seu filho para conhecer um dos líderes do governo militar no Brasil? É óbvio que ele concordou.

Escoltados pelo amigo, eles entraram numa pequena fila e em poucos minutos estavam cara a cara com o presidente.

- Senhor presidente, muito prazer - Fernando se adiantou. - Meu nome é Fernando, eu sou ex-aluno do colégio, como o senhor, e fico muito feliz em conhecê-lo. Ah, esse é meu filho, Armando.

O presidente passou a mão na cabeça do menino.

- Armando, não é? - o presidente perguntou para confirmar. - Menino bonito. Quer ser militar?
- Esperemos que sim - Fernando respondeu pelo filho. - Esperemos que sim.
- Então, Armando - o presidente se virou para o garoto -, você tomou café da manhã hoje?
- Tomei - Armandinho respondeu estranhando a pergunta.
- E o que você gosta de tomar no café da manhã?
- Sei lá. Um monte de coisas.
- Vamos ver... melão. Você gosta de melão?

Armandinho ficou pensativo por um momento. Melão? Melão? Ele odiava melão. Mas, antes de responder a pergunta, ele olhou para o seu pai. Seus olhos estavam brilhando. Por alguma razão que lhe escapava no momento, seu pai estava feliz de lhe apresentar àquele homem. Pensou em mentir, mas lembrou da sua mãe e dos papos que tinham sobre a censura e sobre como era importante a gente dizer o que pensa. Assim, respondeu:

- Eu odeio melão.

O presidente riu e insistiu:

- Mas por que você não gosta de melão? É uma fruta tão boa. Eu adoro melão.
- Ah, é? - Armandinho emendou sem pensar. - Vai ver é por isso que você tem cabeça de melão.
- Como? - o presidente e seu pai se espantaram.
- É isso aí. Você tem cabeça de melão. Cabeça de melão, cabeça de melão, cabeça de melão - Armandinho cantarolou.

* * *

Depois de cinqüenta milhões de "desculpe", "me perdoe", "eu não sei de onde ele tirou isso", Fernando e Armandinho saíram do colégio militar. Fernando, envergonhado, não falou nem olhou para o filho por todo o trajeto de volta.

Ao chegarem em casa, Marlene os recebeu irônica:

- Ué, Fernando? Já está de volta? Não tinha milico o suficiente para você ficar bajulando?
- Bajulando? - Fernando se enfureceu. - Bajulando? Você não sabe o que o SEU filho fez.
- O quê?
- Ele chamou o presidente de cabeça de melão. Vê se pode. Cabeça de melão.

Marlene caiu na gargalhada. Fernando olhou para ela com raiva e, desmoralizado, saiu de casa batendo a porta. Marlene limpou os olhos, já estava chorando de tanto rir, e chamou o filho. Armandinho se aproximou meio envergonhado, abraçou a mãe e perguntou:

- O papai tá zangado comigo?
- Tá não, querido. Tá não. O lance dele é comigo. Fica tranqüilo.

Marlene afastou se um pouco de Armandinho. Olhou para ele cheia de orgulho, pegou-o pelos braços, tascou-lhe um beijo da bochecha e o abraçou mais uma vez, repetindo:

- Subversivozinho lindo da mamãe. Subversivozinho lindo da mamãe.

Pronto. Como não podia deixar de ser, em pleno fim de ditadura, nascia ali mais um revolucionário filhinho de mamãe.

Lisandro Gaertner
Rio de Janeiro, 23/4/2004

 

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