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Sexta-feira, 16/4/2004
Diversões
Eduardo Carvalho

Voltando de carro, numa sexta-feira à tarde, da faculdade para casa, depois de uma excelente aula de "Administração de riscos usando derivativos", estava ainda tão concentrado na matéria - pensando em oportunidades operando commodities no Brasil - que não acreditei no que se passava do outro lado da janela. Aproximadamente trinta adolescentes, em Higienópolis, se concentravam na porta de uma lan house, e uma pimpolha gordinha, do lado de fora do estabelecimento, fazia sinal de venha, para alguém ainda não identificado. Um moleque magro, com o rosto coberto por espinhas e a topete embaixo do boné, fingia acalmar a gordinha, enquanto a provocava. O bujãozinho estava estourando. E então se aproximou, vestida de preto, uma outra menina, magra e alta, que com 15 anos mascava chiclete com a malícia dos baixos meretrícios. Os estudantes se excitavam. O garoto de boné se afastou. A magra agarrou, em um pulo, as banhas da gorda; a gorda socou onde deveriam estar os peitos da magra. Ambas caíram no chão. Cabelos voavam. E, em volta, meninos e meninas se divertiam, soltando gritinhos e sorrisos enquanto as duas se espacavam na sarjeta.

Encostei e desliguei o carro, assim que encontrei uma vaga, e desci. Só que havia, ao lado das meninas, um carro bacana estacionado, com um homem dentro - que desceu, e separou a briga antes de mim. A gordinha cumprimentou o cara de boné, que a retribuiu com um beijo. A magrinha, arranhada, voltou também para sua roda de amigos, com uma risada nervosa. O homem que separou a briga abriu a porta de passageiro do carro que guiava, e enfiou a gordinha dentro, irritado. A gordinha estava nitidamente feliz. Adorou a briga. Agora saia, de motorista, e voltava para casa, para jantar com seus pais. A magrinha talvez fosse antes para a casa do namorado orgulhoso, jantar com a família dele, como se nada tivesse acontecido - e à noite deve ter caído na balada, com as amigas, esgotando a energia que restou. O resto da molecada - depois de aplaudir a briga - deve ter voltado para a frente do computador, e massacrado seus inimigos virtuais.

Eu fiquei arrepiado. E o que me assustou não foi a briga isoladamente: foi como ela aconteceu. Como se duas meninas de quinze anos se estapeando na calçada fosse normal, bonito e engraçado. O que me fez quase tremer foram os olhos brilhantes daquela molecada entediada, desesperada por emoção, delirando de prazer sádico quando deveriam estar chocados. Isso já não é coisa da idade. É doença. E uma doença espiritual, difícil de ser diagnosticada e remediada, porque seu agente é normalmente disfarçado, e permanece desconhecido. Psicólogos simplistas aceitam essas barbaridades como naturais de uma fase em que os hormônios estão pipocando. Educadores vulneráveis caem no discurso psicológico, e - se esquivando de qualquer responsabilidade - somam mais um, o dos sociólogos esquerdistas: o de que essa barbaridade é conseqüência da "desumanidade do sistema" em que vivemos. Os pais, consumidos por exigências profissionais, acabam desorientados e ausentes. E assim todos desculpam os principais responsáveis pelas imbecilidades juvenis, como a que vi acontecer na porta da casa de jogos de computador: os próprios jovens imbecis.

A arte de viajar

Alain de Botton é um escritor erudito que resolveu tornar-se popular - e escreveu Como Proust pode mudar a sua vida e As consolações de filosofia. Só que sem dispensar a ironia - presente mesmo em seus títulos - e a qualidade de seu estilo. Alain de Bottom escreve com cuidado e precisão - e seu último livro publicado no Brasil, A arte de viajar, foi especialmente bem traduzido por Wádea Barcelos. Os apreciadores dessas duas artes - a literatura e a viagem -, portanto, precisam correr e comprar os seus exemplares.

O livro é composto por relatos de experiências pessoais, de viagens e leituras, em lugares óbvios - Amsterdã, Madri, Londres - e remotos - Barbados, Sinai, América Latina. As impressões de viajantes e escritores ilustres são muito bem escolhidas, captadas e descritas com cuidado por Botton: Ruskin, Van Gogh, Flaubert, Humboldt, Wordsworth.

O modelo de literatura praticado por Botton é exatamente o que falta no Brasil: que é a combinação equilibrada, em alto nível, entre a erudição e o divertimento. É onde deveriam estar situadas nossas crônicas de jornal, se os leitores fossem mais exigentes. Quem sabe a leitura de Botton os ensine a ser.

Porque A arte de viajar não insiste apenas no estímulo provocado por impulsos externos, aqueles que qualquer ignorante, ao visitar um país diferente, é capaz de sentir. Botton - ao ligar escritores de qualidade a lugares maravilhosos - provoca também a capacidade de percepção do viajante, que vai muito além de leituras de guias e roteiros de viagem. E mostra que, para um espírito aberto e atento, mesmo um quarto fechado - como podia ser para J.-K. Huysmans - pode ser infinitamente interessante. Ou, para satisfazer sua curiosidade, o mundo inteiro - como no caso de Humboldt - pode não ser suficiente.

Para ir além





Eduardo Carvalho
São Paulo, 16/4/2004

 

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