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Quinta-feira, 22/4/2004 Glauber e o Golpe: da esperança ao desencanto Lucas Rodrigues Pires Entender o Cinema Novo e os ideais que o motivaram é, ao mesmo tempo, entender toda a geração que teve nos anos 60 seu auge em termos de esperança e transformações histórico-sociais. Geração que também presenciou essa mesma esperança transformar-se em niilismo e desencanto com o golpe militar de 1964. Compreender essa transição de sentimentos através dos filmes de Glauber Rocha é o objetivo aqui. Contexto político-cultural O Brasil vinha de uma nova e recente experiência democrática pós-Segunda Guerra Mundial, com o fim da ditadura Vargas. Os anos 50 foram marcados pelo nacionalismo getulista e, em seguida, pelo desenvolvimentismo de Juscelino Kubitschek. Os anos 60 iniciaram-se com a chegada de João Goulart à Presidência da República após a renúncia de Jânio Quadros. Jango era homem de esquerda, de uma tradição gaúcha de governar para as massas, tal qual Getúlio Vargas, seu padrinho político. Logo em 1961, quando assume a presidência, mesmo sob o manto do parlamentarismo, reafirma sua intenção política de reformas nacionalistas em prol do trabalhador e do país. Um pensamento de esquerda enfim encontrava uma política de esquerda para sua realização. Como é dito no documentário Jango, de Silvio Tendler, "Jango, com suas reformas, fez o Brasil viver suas utopias". Essa euforia esperançada numa mudança de direção política no Brasil - um governante socialista que implantaria o socialismo no país - não acontecia à toa. O cenário era de mudanças: política e cultura eram assuntos correntes e a revolução social, tão sonhada, se mostrava realizável, seria uma mera questão de tempo. Nunca se viu nesse país uma geração tão politizada como a juventude dos anos 60. Estudantes e intelectuais assumiam intensa militância política e cultural, a UNE (União Nacional dos Estudantes) era forte, com acesso às instâncias do poder, e os CPCs (Centro Popular de Cultura) se organizavam e definiam estratégias para a construção de uma cultural nacional, popular e democrática. Na cidade, o operariado demonstrava sua força pela crescente participação sindical, enquanto no campo o movimento das Ligas Camponesas avançava, principalmente no Nordeste, em busca da almejada reforma agrária. Todo esse cenário político de transformação os artistas deixaram transparecer em seus discursos, obras de arte e atitudes. O Cinema Novo foi um dos movimentos artísticos que buscaram levar, pela sua arte, a conscientização política e a futura (mas iminente) revolução. Glauber Rocha, Nelson Pereira dos Santos, Joaquim Pedro de Andrade, Ruy Guerra, Paulo César Saraceni, Leon Hirszman, Cacá Diegues, Arnaldo Jabor, Roberto Santos e David Neves foram cineastas que pensaram o cinema como instrumento de conscientização política (muitos deles faziam parte do CPC, que buscava direta e explicitamente essa conscientização via exibições de filmes, como ocorreu com o filme considerado advento do Cinema Novo, Cinco Vezes Favela). A idéia era tratar dos problemas do povo para conseguir conscientizá-lo de que uma mudança se fazia necessária e urgente. A revolução estava nos ares e ela precisava de seu agente-mor. O cinema como meio de se atingir a consciência e a posterior revolução. A revolução não somente como um desejo, mas uma necessidade social. A utopia tornava-se possível. Faltava apenas trazer o povo para o campo da ação. Glauber em cena A figura de Glauber Rocha surge, definitivamente, no cenário cinematográfico nacional com Barravento, em 1961. Depois de entraves na produção, quando o então diretor Luiz Paulino dos Santos deixa a produção e esta fica a cargo de Glauber, e de pronta a fita (Glauber convocaria Nelson Pereira dos Santos para, na montagem, tentar dar ao filme certa unidade e compreensão), Barravento já mostra do que seria feito o cinema desse baiano agitador. No filme, Firmino, recém-chegado da cidade, tenta tirar um grupo de pescadores na praia de Buraquinho, na Bahia, explorado pelo dono da rede, da condição passiva e submissa diante da exploração. O filme é construído pela oposição do discurso de Firmino, o elemento perturbador e motor das transformações que ocorrerão em seguida, à passividade da comunidade, gerada principalmente pela religião. O que Glauber faz em Barravento é uma crítica à alienação causada pela religião, coisa que terá novo apontamento em Deus e o Diabo na Terra do Sol. Em partes ela impediria a revolta e rebelião da população frente a seus exploradores. Três anos depois de Barravento, Glauber lança o filme que marcaria não só o ápice da utopia revolucionária dos anos 60 no Brasil, como o filme que deixou até hoje marcas de seu culto na cultura nacional. Deus e o Diabo na Terra do Sol foi o impulso de mobilização para a revolta numa era de absoluta esperança nela. Se no final de Barravento o povo não estava preparado para a revolução, ao final de Deus e o Diabo, após passar pela experiência alienante do misticismo violento de Sebastião e da violência mística do cangaço, Manuel, o vaqueiro protagonista, está inteiramente livre para a revolução - a ver o sertão virar mar e o mar virar sertão. Nessa travessia de conscientização, Manuel é levado por Antônio das Mortes, o matador de cangaceiros, que interrompe as duas experiências de alienação nas quais Manuel se envolveu - ele põe fim ao bando de Monte Santo e à aventura do cangaço ao matar e decepar Corisco, o diabo louro. Antônio seria o elemento motor da revolução (Glauber o definiu como personagem deflagrador, pré-revolucionário), tal qual Firmino em Barravento. Os filmes cinemanovistas pré-64, em especial os acima citados de Glauber, tinham a função de incitar, gerar certo descompasso que levasse o povo à ação, que o tirasse do transe da passividade na qual a religião e outras expressões populares (futebol, festas etc.) tinham papel fundamental na manutenção. A intenção era mostrar que a única saída frente à exploração e alienação seria a violência, a revolta. Os filmes estariam em busca da disponibilidade do povo para essa visão e, principalmente, para a ação. Daí ser o final de Deus e o Diabo na Terra do Sol libertário, revolucionário. Assim, o povo, libertado das formas de alienação que o mantém na passividade, alcançaria a consciência com a ajuda de um terceiro elemento e, finalmente, poderia fazer o sertão virar mar e o mar virar sertão. A revolução almejada estaria, enfim, apta a ser realizada. O golpe e a interrupção do sonho E a revolução veio, mas não aquela esperada pelos cinemanovistas e pela esquerda intelectual do país. Na noite de dia 31 de março de 1964 veio a contra-revolução, a dos militares contra a geração que ansiava pela revolução socialista. A opção por não abrir uma guerra civil no país por parte de Jango entregou o Brasil ao governo militar, apoiado pelo governo norte-americano e por grande parcela da população que, acreditavam erroneamente os militantes de esquerda, estariam do seu lado. Em carta coletiva para Glauber, que estava em Cannes para a exibição de Deus e o Diabo, em meados de abril de 1964, alguns cinemanovistas tentam colocar o cineasta a par da situação política brasileira. Numa mistura de desilusão e esperança, escrevem: "Há razões de sobejo para o desespero; para a esperança nós as estamos procurando. (...) mas, efetivamente, a coisa ficou feia por aqui. (...) já sabes que aconteceu: um golpe militar que é apelidado pela imprensa reacionária de 'revolução' e a instauração de uma ditadura militar, apresentada como salvação da 'democracia'. (...) A revolução florida entrou pelo cano" O cenário era de tensão em razão do rompimento da ordem democrática e a paralisação do processo revolucionário até então em andamento no período. Sem resistência, os militares acabaram por se instalar e organizar um governo baseado na opressão (principalmente pós-68) e voltado a uma política de direita conservadora, de planejamento econômico que excluía a maioria da população. A população civil aquietou-se, com a maioria dela a apoiar o golpe. A classe média brasileira e os meios de comunicação reacionários a acobertaram, muitos a saudaram. Como crer numa população que aceita as condições impostas pelos militares e que não luta por liberdade? Jabor filmou o documentário Opinião Pública (1968) para justamente mostrar essa classe média alienada diante da situação política de então. Nesse ambiente de questionamentos da passividade da classe média e do povo, Glauber realiza Terra em Transe, obra que se transformaria no balanço da sua própria geração, daqueles que visualizavam a revolução e foram desenraizados com o golpe de 64. Depois do golpe, o Cinema Novo mudou de rumo e passou a pensar o porquê do fracasso dos projetos de esquerda, o que necessariamente invocaria um movimento de auto-reflexão. Foi essa a engrenagem que tornou mais urgente a discussão sobre a mentalidade do oprimido no Brasil, aquele que anteriormente deveria se revoltar contra a exploração e miséria. Não só do oprimido, mas também de toda a classe intelectual que acreditava estar próxima ao povo e a ajudando em seu processo de conscientização. Terra em Transe será a expressão maior dessa conjuntura cultural e política, um balanço do que foi a geração que pensou o país antes de 1964. Ao mesmo tempo, vai expor toda a ambigüidade do Cinema Novo, que se utilizou de uma linguagem erudita e hermética para dialogar com as massas. O filme é feito no calor da hora, resultado da experiência vivida no momento de efervescência do golpe. A conclusão a que Glauber chega sobre sua geração envolve uma auto-alienação criada em torno dela mesma. Uma falsa proximidade com o povo por parte dos intelectuais e militantes de esquerda e a aliança com forças da sociedade que os deixaram (a burguesia classe média). Ninguém escapa da câmera de Glauber, nem mesmo ele e seu grupo, que podem ser encarados como o intelectual e poeta Paulo Martins, uma consciência em agonia frente à morte iminente. Impotente hoje, o militante de esquerda (Paulo Martins) não enxerga as contradições de seu discurso, tal qual o próprio Cinema Novo e sua objetividade contraditória. Idealiza um governo revolucionário e a favor do povo, mas este não tem voz ativa no processo. Quando Jerônimo, homem do povo, quer falar, ele é calado por Paulo Martins, seguido do discurso deste direto para a câmera: "Estão vendo o que é o povo? Um imbecil, um analfabeto, um despolitizado! Já pensaram Jerônimo no poder?" Assim, o povo, agente da revolução, heroizado num momento pré-64, é retratado com desprezo, como massa de manobra inerte e sem nenhuma participação na tentativa de tomada de poder. O povo existiria apenas na abstração retórica do populismo de Vieira. A esquerda, o Cinema Novo e Paulo Martins: todos buscavam uma revolução popular, mas sem o povo... Não apenas os homens conscientes estão em xeque em Terra em Transe. O povo também é objeto de severas críticas. Se em Barravento ele não estava preparado para a revolução, ao final de Deus e o Diabo na Terra do Sol ele era o sujeito histórico apto às transformações. Mas nessa alegoria do Brasil no momento do golpe militar de 64, o povo calou-se e passivamente aceitou o golpe. Portanto, tal fato demonstra não apenas a inaptidão da esquerda em seu processo de conscientização política do povo, mas principalmente que as forças alienantes ainda mantinham a passividade de todos. Como entender a relutância do povo em assumir a tarefa da revolução e como aceitar que esse mesmo povo, mais a classe média, nada fez para impedir a continuação do golpe? A desilusão de Glauber em Terra em Transe foi o fruto da impotência em que ele e toda sua geração se viu diante dos novos rumos do país. A revolução, que se faria de qualquer maneira porque vista como uma necessidade, naufragou. O modelo nacional e social almejado foi abortado. A esperança de Deus e o Diabo na Terra do Sol cedeu lugar ao desencanto de Terra em Transe. Esse exercício auto-reflexivo de Glauber demonstrou o equívoco da sua geração. Paulo Martins, em momento de transe e agonia após ser ferido, proclama: "Não é mais possível a ingenuidade na fé, a impotência da fé". Tais palavras são o balanço também de Glauber para o sonho de revolução vivido nos anos pré-64, tanto de sua geração quanto do povo. Ambos - intelectuais esquerdistas e povo - viveram plenamente a ingenuidade e a impotência da fé, uns pela religião, outros pelo sonho de revolução. Mas ainda hoje a revolução se faz necessária. Só esperamos que o golpe de 1964 tenha ensinado algumas lições. Lucas Rodrigues Pires |
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