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Quarta-feira, 21/4/2004
Apesar de vocês
Alexandre Petillo

31 de Março de 1964, instaurava-se o Regime militar no Brasil. O meio artístico brasileiro só foi se manifestar, de forma (mais ou menos) clara e contundente, seis anos depois, com essa música:

"Hoje você é quem manda
Falou, tá falado
Não tem discussão
A minha gente hoje anda
Falando de lado
E olhando pro chão, viu
Você que inventou de inventar
Toda a escuridão
Você que inventou o pecado
Esqueceu-se de inventar
O perdão

"Apesar de você
Amanhã há de ser
Outro dia
Eu pergunto a você
Onde vai se esconder
Da enorme euforia
Como vai proibir
Quando o galo insistir
Em cantar
Água nova brotando
E a gente se amando
Sem parar

"Quando chegar o momento
Esse meu sofrimento
Vou cobrar com juros, juro
Todo esse amor reprimido
Esse grito contido
Este samba no escuro
Você que inventou a tristeza
Ora, tenha fineza
De desinventar
Você vai pagar e é dobrado
Cada lágrima rolada
Nesse meu penar (...)"

"Apesar de Você"
(Chico Buarque, 1970)

Simples e direto. As ditaduras existem para derrubar os regimes democráticos, por meio de golpes, e estão dispostas a acabar com a liberdade do povo - a exigir que todos façam aquilo que seus líderes acham certo. Geralmente, os ditadores, para conseguir seu intento, gozam de grande apoio por parte dos setores mais conservadores da sociedade. Além da elite da sociedade. O mote principal é manter sua ascendência sobre os menos favorecidos e reprimir opositores. Com o tempo, os democratas conseguem abrir seu espaço - a custa de alguns mortos e/ou desaparecidos.

E, a cultura brasileira, é e sempre foi de direita. No Brasil, quando se trata de cultura, mesmo quem é de esquerda, passa a ser de direita. Isso é facilmente perceptível, a maioria das pessoas que conhecemos tem certeza de que a MPB acabou com os discos do Chico Buarque nos anos 70. E que o rock brasileiro decente só aconteceu nos anos 80, com a Legião Urbana. Pensamento direitista.

Além disso, o brasileiro acredita que arte de qualidade é aquela rebuscada, de difícil compreensão e demorado processo de absorção pelo seu público. Durante quase duas décadas de ditadura, poucos artistas falaram diretamente para o povão, conscientizando e conclamando algum tipo de revolta. Caetano Veloso, por exemplo, no auge da ditadura, dizia que "devíamos aliviar o cálice". Neguinho achava que era pra todo mundo ficar bêbado.

Pode até parecer exagero dizer, mas a primeira demonstração de revolta democrática, que poderia diretamente ser compreendida pelo povo, aconteceu em 1982 durante a Democracia Corintiana. Porque, de futebol, o povo entende. Tudo bem que naquele ano, já vivíamos um início de uma abertura política. Pela primeira vez, desde 64, os brasileiros votaram, elegendo democraticamente governadores nos Estados. Mas, o fato é que o Parque São Jorge foi o primeiro local do Brasil a respirar ares democráticos. Um ato de coragem, contra o governo estabelecido e contra o espírito paternalista e ditatorial que é o futebol, até hoje.

A música também só começou a falar diretamente ao povo, contra a repressão, com a explosão do rock brasileiro, em músicas como "Proteção", da Plebe Rude e, principalmente, "Inútil", do Ultraje a Rigor. A música, junto com Sócrates, Casagrande, Wladimir, representantes da Democracia Corintiana, foi cantada por milhares na Praça da Sé, na maior convenção a favor das eleições diretas para presidente do País. Resumindo: a contestação saiu da união do futebol com o rock, coisas que todo mundo captava. Transgressão, mesmo que em tempos mais leves.

Juntou sua banda, chamou os conhecidos, os mais chegados e gravou o disco que faltava para aquela multidão que pedia voto, liberdade e a Copa do Mundo, cantar em uníssono, lá na Praça da Sé. "Inútil, a gente somos inútil".

Em 13 de janeiro de 1984, o principal nome das campanhas da Diretas, conhecido como Sr. Diretas em pessoa, deputado federal Ulysses Guimarães, declarou que ia mandar o compacto de "Inútil" para o presidente João Figueiredo. A letra dizia, entre outras coisas, que "a gente não sabemos escolher presidente/ a gente não sabemos tomar conta da gente". A citação ratificava o jovem rock nacional como trilha sonora da década. Enquanto que, no exílio, os representantes da MPB escreviam canções e faziam filmes que, nem sempre, os mesmos compreendiam.

Naquela época, entre 1983 e 85, era preciso ter cultura para mijar na escultura. Ou seja, dava para meter a boca, desde que fizesse isso com inteligência, refinamento, sagacidade, coisas que os censores não entendiam. Mas, ainda assim, corriam o risco de ver seus LPs riscados, manualmente, como aconteceu com a Blitz.

Na verdade, de acordo com o brilhante livro de Paulo César Araujo, Eu Não Sou Cachorro, Não, um dos artistas que mais contestaram o regime foi, acredite, Odair José. As páginas do livro mostram que ele foi corajoso e provocador durante o regime militar. Principalmente porque falava diretamente ao povão, enquanto Caetano, Milton Nascimento e afins atingiam um segmento de classe média, universitário, e naturalmente progressista.

Odair e a chamada "música brega" falava para o povão, em seu sentido mais comum: católico, conservador, apegado aos tabus, aos valores sociais vigentes. As composições de Odair José focalizavam diversos temas do cotidiano e convidavam seu ouvinte à reflexão e ao questionamento. Falava, por exemplo, de prostituição ("Vou Tirar Você Desse Lugar"), homossexualismo ("Forma de Sentir"), drogas ("Viagem"), anticoncepcionais ("Pare de Tomar a Pílula"), exclusão social ("Deixa essa Vergonha de Lado"), religião ("Cristo, quem é Você?"), adultério ("Pense ao Menos em Nossos Filhos"), só para ficar nos assuntos mais polêmicos.

Para completar, ele ainda compôs uma ópera-rock de protesto religioso, o que provocou a fúria da Igreja e levou alguns padres até a ameaçá-lo de excomunhão. Acabou proibido pela Igreja e pelo regime dos generais. Mas o povão entendeu o recado. Odair José, Agnaldo Timóteo e Waldik Soriano atingiam multidões muito maiores do que os fãs de Chico e Caetano.

Por essa falta de representação popular, capaz de inflamar e informar o povão, o Golpe aconteceu de forma pacífica, sem qualquer tipo de reação. Foi mais do que um Golpe, foi uma puxada de tapete. Não houve combate, revolução, batalha. Quando percebemos, já era tarde.

Hoje, estranhamente, paira um (péssimo) cheiro de 64 no ar. Dois dias antes do aniversario de 40 anos do Golpe, aparece no Jornal Nacional uma fita extremamente prejudicial para o Governo Lula. No dia seguinte, o Ministro da Justiça diz com contundência que está acontecendo uma "conspiração" no Planalto.

Para colocar ainda mais a pulga atrás da orelha, desde que o ano começou e a classe média intelectualizada convencionou que era melhor fazer uma onda negativa e pessimista contra Lula e asseclas. Toda e qualquer boa notícia era abafada, para dar espaço para toda e qualquer má notícia. E a classe média intelectualizada, estudada, mas sem o menor espírito crítico, reverbera as más vibrações com vontade e a boca cheia.

É até compreensível. A gente vem de uma série de governos catastróficos. Nosso primeiro presidente eleito em 30 anos, deu no que deu. Ainda tivemos Sarney, Itamar, um horrível segundo mandato de FHC. A coisa ficou bem preta. Bate realmente um desânimo, mas se for sempre assim, vamos todos nos mudar para o meio do mato e ficar esperando o salvador.

Brasil, ame-o ou deixe-o. Pelo que tudo indica, existe uma possibilidade da gente ouvir Dom e Ravel de novo liderando as paradas de sucesso. E todo dia, logo cedo, vamos ouvir uns 200 moleques perfilados e desafinados cantando a horrorosa "Eu te amo, meu Brasil" na escola.

Mas tem um lado bom. Agora, no Golpe de 2004, Caetano canta em inglês. Não que faça alguma diferença, ninguém ia entender mesmo. Já Chico, não cantava "Apesar de Você" nem mesmo na época da ditadura. Corria o risco de ser preso - os censores já tinha avisado. O público pedia, Chico fazia que não era com ele. Até que num show, sua mãe estava presente e percebeu a vontade dos presentes em tocar a música, e Chico se recusando. Não se conteve, gritou: "Seja homem, meu filho. Toca a música".

Alexandre Petillo
São Paulo, 21/4/2004

 

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