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Quinta-feira, 29/4/2004
Detefon, almofada e trato
Adriana Baggio

A democracia é um sistema político consolidado no Brasil, certo?

Se você respondeu "sim" convictamente, é melhor rever sua opinião. Após 20 anos das Diretas Já e 40 anos do golpe militar, a divulgação dos resultados de uma pesquisa sobre a democracia na América Latina, realizada pelo PNUD (Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento), só faz reforçar a lenda da memória curta do brasileiro.

A pesquisa, intitulada A Democracia na América Latina, foi realizada em todos os países latinos do continente e ouviu mais de 18 mil pessoas. O relatório levou dois anos para ficar pronto e apresenta, entre outros aspectos, a opinião da população sobre a democracia, os principais problemas dos países, o grau de confiança nas instituições públicas e no governo e também o chamado IDE. O IDE, Índice de Democracia Eleitoral, avalia a participação da população nas eleições, a liberdade e a correção do processo eleitoral e o acesso a cargos públicos através do voto. Nesse aspecto o Brasil atingiu o ponto máximo entre 1990 e 2002, mostrando que em nosso país a democracia e os direitos políticos da população estão consolidados.

Se o regime político e a participação da população no processo eleitoral estão garantidos, o mesmo não se pode dizer do acesso à educação, à segurança, a condições dignas de vida. O Brasil enfrenta altos índices de pobreza e desigualdade. Talvez seja por isso que a maioria dos entrevistados, cerca de 54%, disseram que trocariam a democracia por um regime totalitário se ele fosse capaz de resolver os problemas econômicos. Se você começa a sentir um incômodo déja vu, com certeza não é o único. Uma das justificativas para a ditadura militar no Brasil foi justamente o desenvolvimento econômico e o bem-estar da população.

Pelos dados apresentados na pesquisa, parece que o brasileiro desqualifica o regime democrático por conta da incompetência dos representantes políticos. A maior parte dos entrevistados se queixa da corrupção, da ineficiência do judiciário, da falta de profissionalismo e do abuso de poder da polícia e da incapacidade do governo em resolver problemas sociais básicos. Além disso, 64,7% acham que os governantes não cumprem o que prometem porque mentem nas eleições.

A análise dos resultados da pesquisa só confirma a incapacidade do brasileiro em relacionar causa-efeito e perceber sua própria parcela de responsabilidade nas situações. Parece o filho mimado, que prefere submeter-se a um pai autoritário e castrador, mas que provenha todas as suas necessidades e caprichos, do que participar ativamente das questões familiares trabalhando para seu bem-estar e, consequentemente, obter daí o seu bem-estar individual.

O governo realmente é ineficiente em muitos aspectos. Mas o brasileiro precisa se mancar e perceber que algumas coisas são culpa dele. As pessoas reclamam da corrupção, como mostra a pesquisa, mas ela é institucionalizada em todas as faixas sociais, em todas as esferas, em todos os níveis hierárquicos. Claro, corrupto é o Waldomiro Diniz, não o cidadão que ultrapassa o limite de velocidade nas estradas e tenta subornar o guarda para não levar multa. De que adianta reclamar do governo, da corrupção, da polícia e da justiça, se nos aproveitamos das ineficiências dessas instituições quando é para nosso benefício?

São muito esquisitas também as reclamações sobre a honestidade das promessas de campanha quando políticos reconhecidamente incompetentes e criminosos continuam sendo eleitos para cargos públicos. Se o nosso processo eleitoral é o melhor da América Latina e mesmo assim continuamos a eleger mentirosos, o problema está em quem? Nos eleitores, é claro.

Parece que a eleição está muito mais relacionada a uma oportunidade de negócios, de obtenção de benefícios, do que a um processo democrático de escolha de governantes e representantes que façam o melhor pelas cidades, estados e pelo país. O critério do voto está na base do "o que é que eu ganho com isso?". É evidente que, nos casos em que mesmo as necessidades mais básicas de uma comunidade não estão satisfeitas, o voto está muito distante de um ato de cidadania. É uma das poucas vezes em que essas pessoas terão uma moeda de troca com algum valor, e que mesmo assim compra muito pouco pelo tanto que vale. Uma cesta básica, uma camiseta, às vezes um par de muletas.

No entanto, as esferas social e culturalmente privilegiadas também agem assim, mesmo tendo, em teoria, condições de perceber o real papel do voto. Ele continua sendo usado como moeda, mas nessas esferas seu valor aumenta. Portanto, é muita cara de pau dos brasileiros reclamarem das promessas de campanha não cumpridas quando gente como Paulo Maluf aparece, novamente, em primeiro lugar nas pesquisas de intenção de voto para a prefeitura de São Paulo.

O Brasil ainda é uma nação muito jovem. Assim como os adolescentes, o país talvez precise de tempo para amadurecer e assumir a responsabilidade pelos seus atos. Muita gente lutou para que o país voltasse a um regime democrático, mas parece que a população sofre da mesma inconstância e crise de identidade dos púberes. Entre um regime paternalista e repressor, mas que tira o peso da responsabilidade, e uma situação democrática que só funciona se cada um assumir seu papel e contribuir para o bem-estar geral, parece que os brasileiros estão preferindo detefon, almofada e trato.

Adriana Baggio
Curitiba, 29/4/2004

 

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