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Sexta-feira, 30/4/2004
1964-2004: Da televisão à internet – um balanço
Julio Daio Borges

Meu primeiro impulso, ao pensar num tema para estes 40 anos do "1964", foi escrever um balanço cultural entre o "ontem" e o "hoje". Mas seria uma análise incompleta (pois não tenho total domínio sobre as manifestações artísticas nestas quatro décadas), e cairia, inevitavelmente, nas obviedades de sempre: "Nos anos 60, tínhamos Chico, Caetano, Gil, Milton e Jorge Ben - e agora, temos o quê?". Ou seja: é muito fácil chegar à conclusão de que vivemos numa wasteland (pelo menos musical), mas é muito mais difícil identificar o porquê desse estado de coisas. É o que vou tentar fazer aqui. (Não sei se vou conseguir.)

Quando penso em 1964, em 1968, em termos culturais, e no que significativamente mudou, daqueles tempos para cá, penso logo na televisão. Mais especificamente, na fundação da Rede Globo (1965). Claro, também é muito fácil demonizar a Globo - e eu vou tentar não cair nessa tentação. De qualquer forma, tudo o que ocorreu desde então (principalmente para quem nasceu, como eu, na década de 1970) passou pelo "filtro" da Rede Globo. (Hoje, sua hegemonia não é o que era, mas basta imaginar um mundo sem controle remoto, sem Silvio Santos [um produto da Globo], sem cable TV, sem internet e - sobretudo - num regime onde toda crítica era camuflada e onde todo pensamento crítico não florescia...)

Eu fui uma criança que cresceu assistindo ao Sítio do Pica-Pau Amarelo, às oito horas da manhã (e meu pai implicava com a minha mãe, pois esta deixava que ligássemos o televisor logo cedo). Cresci à base de desenhos animados da Hanna Barbera (não na Globo) e quase peguei a Xuxa (na época da Manchete, em 1983) - mas, graças a Deus, me livrei do primado das apresentadoras de programas infantis para debilóides (aos 10 anos já achava o Bozo - ele havia estreado há pouco - um débil mental). Amadureci vendo novelas e me lembro relativamente bem de todas às quais assisti; felizmente me libertei delas ainda no início da adolescência.

Tudo isso para dizer que eu faço parte do sistema, que eu fui formado por ele, e que ele não me é estranho. No início da minha juventude, vivemos a primeira libertação dos escravos, com a introdução de canais UHF (tinha de comprar aquela antena) e com as experiências incipientes em matéria de TV a cabo (com algum esforço, era possível sintonizar a ESPN e mais alguns programas esporádicos de graça). Tomei um banho de MTV e meus heróis, além dos músicos, eram alguns VJs (hoje, sei, sucumbiram ao apelo da indústria da moda - onde uma carinha bonitinha [e um corpo "sarado"] manda[m] mais que um cérebro funcionando, como, aliás, em todos os outros canais).

Enfim, eu ia falar da Globo. E da televisão. Pois então: penso que a minha geração, e as subseqüentes (até muito recentemente), cresceram anestesiadas pela "máquina de fazer doidos". Como diria Platão (através de Sócrates), não acho que a tevê seja uma forma de conhecimento. Essa é minha tese há muito tempo - e sei que muitos de vocês agora vão chiar. É incalculável o quanto perdemos vendo televisão (e o quanto se perde ainda - apesar de que sua força vem diminuindo com o tempo...). Não apenas em horas diante do aparelho, mas sim formando uma "mentalidade" em que todo o resto é visto sob a ótica da televisão.

Outro dia, um exemplo, fui a um lançamento de livro de um amigo. Ele dividia a palestra (introdutória à sessão de autógrafos) com outro escritor. Este último (embora relativamente conhecido nos meios) se comportava exatamente igual a um apresentador de programa de auditório: apelava para piadas jocosas, queria ser o centro das atenções, falava mais alto do que o necessário e se utilizava de expressões nada literárias (que denunciavam suas "influências") como "o povo quer saber". Eu senti vergonha pelo meu amigo; ele era muito mais do que aquilo (se algum desconhecido visse, não acreditaria), mas ele tinha de fazer uso de expedientes como esses, senão as pessoas ali presentes ou dormiriam ou se aborreceriam. (Afinal, estavam acostumadas à esparrela da televisão.)

Outro exemplo. Nélson Rodrigues escrevia, em suas crônicas, que uma coisa dita uma única vez permanecia inédita; era preciso repeti-la, portanto, para que se fizesse conhecer. Depois da televisão essa colocação simples se transformou em religião: o bombardeio de estímulos audiovisuais (que contaminam também o cinema, pois este se vê obrigado a competir) é tamanho que ninguém mais presta atenção em nada. (Depois vai se tratar de DDA.) Assim, o esforço para se transmitir uma informação, uma analogia, um raciocínio tem de ser decuplicado. Por conseqüência (em comparação à televisão), um longa do Novo Realismo Italiano parece "lento"; um livro (qualquer que seja) parece "chato" apenas; uma música (que não seja barulhenta e de curta duração) provoca sonolência aguda. (Nem precisa dizer que esses aspectos todos foram abordados, em muito maior profundidade, pelos "teóricos da comunicação". O que exponho aqui é apenas a ponta do iceberg.)

Então você entende porque as telenovelas da Globo repetem os seus enredos e as mesmas "situações" há tantos anos; porque as vinhetas do Fantástico e do Jornal Nacional não mudam desde que foram inventadas; porque o Galvão Bueno expele as mesmas barbaridades a cada Copa do Mundo de futebol; porque - verdade seja dita - os "ídolos" dos anos 60 permanecem "insuperáveis" (e dá-lhe Elvis, e dá-lhe Beatles, e dá-lhe MPB...), enquanto há um mundo lá fora diariamente se renovando. Porque - vamos encarar os fatos - estamos todos petrificados, com as idéias congeladas, reentoando os velhos mantras da televisão. (Sem que ninguém perceba, o que é pior.)

"Ah, mas não é a televisão; e, no Brasil, não é a Globo" - alguém pode objetar. E eu concordo; mas isso não invalida a minha lógica. Sim, tivemos imprensa amordaçada por uns bons longos anos; tivemos um número significativo de membros da nossa "elite intelectual" silenciados ou mesmo banidos; tivemos décadas de prosperidade (ainda que artificial), coroadas com um boom em infra-estrutura (leia-se: empregos), que compensaram, para o grosso da população, quaisquer mazelas do regime de exceção. Mas o "projeto" não estaria completo sem a tevê e sem a Globo. Graças a ambas, - volto a insistir - ficamos travados no tempo e no espaço; habitamos um mundo encantado e sem saída; abdicamos de qualquer desejo ou vontade, a não ser o prato que nos ofereciam à base de Namoradinhas do Brasil, Robertos Carlos e Chacrinhas.

"E onde entra a internet (do título)?" - alguém pode perguntar. A internet, a meu ver, é o antídoto. E aí está a minha segunda tese (contra a qual muitos vão protestar também). A World Wide Web, com sua democratização dos "meios de produção", rompe com séculos de mudez e de ausência de crítica. Pela primeira vez, a voz do Big Brother não é engolida a seco; o tom oficialesco perde o seu ar "marcial" (pois qualquer internauta pode zombar dele); a imprensa (já sem a mordaça desde a Abertura [1984-5]) deixa de ser conduzida, sai da mão de alguns grupos (ligados ao poder de uma forma ou de outra) e, cibernética, está ao alcance de mim e de você. Foram abertas as comportas. E, através da escrita e da leitura (compulsórias no mundo digital), retomamos aquela linha evolutiva de "informação, analogia e raciocínio" - para sair, finalmente, do imobilismo. Desapertamos o "pause" e as cenas, que ficaram paradas lá nos anos 60 ("Chico, Caetano, Gil, Milton, Jorge Ben..."), voltam a se suceder. Não foi uma nem duas: foram quatro, as décadas perdidas.

Não chamaria a internet de "renascimento", como Gerald Thomas chamou, para depois voltar atrás. Ainda assim penso que ela é, além de tudo, um exemplo útil de como o "poder" cultural se descentralizou, nestes tempos de agora. Basta observar o número crescente de pequenas editoras que surgem; de minúsculas gravadoras e de ínfimos selos de fundo de quintal; de incontáveis revistas (e até jornais) superlotando, cada vez mais, as bancas; de produtoras independentes despejando filmes (sim, filmes) e até sangue novo - quem diria... - na outrora mal vista grade de programação. Os problemas - é evidente - são os mesmos de sempre: falta de público, falta de massa crítica, falta de demanda, falta de dinheiro, falta de reconhecimento, falta de "condições". Mas se considerarmos quantos milhões de zumbis ainda somos por despertar (e os investimentos, em todas as áreas, apostam nisso), até que não estamos tão mal. E poderemos, inclusive, um dia, nos gabar de ter vivido anos tão ou mais ricos que os tais anos 60. Ao menos, culturalmente.

Julio Daio Borges
São Paulo, 30/4/2004

 

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