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Quarta-feira, 5/5/2004
A minha casa, sua casa
Ana Elisa Ribeiro

Era uma casa muito engraçada, não tinha acabamento, não tinha telhado, não tinha nada. Não podíamos entrar nela porque havia pregos expostos e cheiro forte de pó. Às crianças não era permitido brincar por ali. Era coisa séria quando meu pai ia travar conversas com os operários, uns poucos e tão conhecidos como vizinhos. E então, a cada vez que íamos visitar a obra, olhávamos tudo como se fossem ocas de índios nus.

Meu quarto, ainda no tijolo, fui eu quem escolhi. Assim como os quadrinhos da parede, de que passei a não gostar quando fiquei adolescente. Não me lembro de ter esconderijo, mas me lembro das horas na frente do Atari, campeã de River Raid.

Não dei meus primeiros passos nessa casa. Acho que os dei no corredor de minha avó, o mesmo em que fica a estante dos primeiros clássicos que li. Mas vivo nesta casa há quase três décadas. É um prédio sólido, cheio de vigas, projetado por um arquiteto nos anos 1970, então ela tem as linhas retas dum caixote de azulejos brancos e verdes. A cor do portão de grades já mudou incontáveis vezes, mas ainda me lembro de quando era branco e quase desnecessário. E já me parecia alto e assombroso.

A casa onde moro por toda a vida tem muitos quartos, três ou quatro salas amplas, uma suíte reservada aos donos, cinco ou seis banheiros, uma grande cozinha que tem sido nossa melhor sala de reuniões durante as madrugadas, quando todos os irmãos afluem para bebericar e comer a fome dos gandaieiros.

Se me lembro bem, os dois irmãos caçulas nasceram nesta casa. Deram seus primeiros passos nestes corredores e aprenderam cedo a subir escadas. Sujaram as paredes com mãos de chocolate e ajudaram a escrever palavras aprendizes no branco encardido. Também quebraram os vasos de cerâmica de minha mãe e ajudaram a entupir privadas com objetos.

Vivo nesta casa há muito e sair dela tem um gosto doce de mudança que muito me emociona. Aos poucos, os quartos se remanejam, os habitantes se vão, os fantasmas e as vozes fazem seus cantos e, em alguns anos, dos seis habitantes ficarão apenas dois, até chegar a nenhum. Os barulhos de nossa infância voltam e suspiro pelos dias frios que passamos juntos na sala, sob os mesmos cobertores coletivos. As mesas de tomar lanche e os hábitos de ver tevê. Um som em cada quarto e os quadros na parede do corredor, com teias de aranhas nossas conhecidas [as teias e as aranhas].

Sempre fui de chorar dentro do banheiro. Olhava-me no espelho para me ver escorrer. Jogava água no rosto, e isso era o máximo que eu me permitia arriar. Quando abria a porta, saía de pé, refeita.

Mudar-me desta casa é um evento. E tem sido estranho pensar nela como a casa dos meus pais. Jamais foi a minha, porque sempre soube que não era de meu gosto, não a acho bonita e nem aconchegante, além de não ter meu nome na escritura, mas a hora mesma da saída tem me parecido o atravessar duma ponte. Do outro lado, a minha vida mais extrema, a minha nova família. E eu, bem-vinda.

Conto
nem acho que seja normal. passei a vida na esquina de marieta machado e indianópolis, num bairro de periferia, tentando entender a dinâmica das pessoas da casa da frente. ele me diz, todas as vezes que saímos, que presto atenção demais na vida dos outros. e ele presta toda a atenção que ainda tem em mim. fico incomodada porque meu inferno sempre foi sustentar o olhar dos outros. enquanto a mãe lavava roupas num tanque lateral, as filhas saíam para passear num fiat verde-escuro. o pai ficava horas sentado na varanda, numa cadeira de vime, coisa que eu jamais teria em minha casa. a dinâmica deles era muito parecida com a vida normal, com o cotidiano simples de qualquer casa de esquina de bairro de periferia. exceto porque toda vez que eles olhavam, eu estava na esquina diagonal, observando com olhos melancólicos. nem acho que seja normal, mas é que minha vida passa melhor quando olho a dinâmica dos outros. sempre admirei as pessoas que dormem na rua. ficam tranqüilas, enquanto ignoram os faróis dos carros fazendo a curva. eu mesma fiz a curva da antônio carlos com formiga, ali perto da pedreira prado lopes, de farol alto muitas vezes. e via os cobertores que eles usavam. uns que serviam para forrar a mesa de jogar truco nas festas da minha família. eu nem acho que seja normal, mas é assim que observo a militância doméstica daquela mulher que lava roupas no tanque e sussurra uns palavrões de vez em quando.

Ana Elisa Ribeiro
Belo Horizonte, 5/5/2004

 

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