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Quarta-feira, 19/5/2004 Quando escrevo, tenho dito Ana Elisa Ribeiro Quando eu escrevo, escrevo para sanar uma coisa que me acontece por dentro. Esse é o primeiro motivo, e é suficientemente forte. Apenas ele bastaria para justificar os poemas, os contos, as crônicas. Mas ele também justificaria diários e cartas de amor. Portanto, preciso de mais motivos para explicar por que razão publico os textos que escrevo. Quando publico o que escrevo, penso em ficar na inteligência coletiva para além do meu corpo, para o tempo além do que depende de eu estar viva para que ouçam minha voz. Penso no mínimo que me poderia fazer pensar que sou infinita, talvez uma ninfa imortal, uma sacerdotisa poética. Esse mínimo é um poema. Um poema que, se lido hoje, amanhã ou séculos adiante, reverbera minha persona poetisa. Publico para entrar na ciranda das pessoas que se acharam injustiçadas por não serem retornáveis como as garrafas de vidro. Quando percebo que lêem o que publico, fico acesa. Ficam meus sentidos móveis e percebo quando falam de mim. Ai de mim se falam bem. É uma pequena felicidade de segundos. Mas se não falam, constato meu domínio, meu limite, meu avesso, meu terreno grilado, a fronteira da minha terra cultivada com a fronteira estética do outro. E respeito. Mesmo se ele não me respeitar, eu o respeito. Percebo que, ainda que o outro não tenha gostado do meu mínimo imortal, o livro exerceu sua função, que é a de ser lido. Chegou aos olhos ávidos d'alguém, só não obteve boa fama. E ainda isso será motivo de discussão, porque um outro alguém ávido terá lido e terá gostado do meu pouco exíguo chão de letras. Quando alguém me diz que gosta e me pergunta o que foi que eu quis dizer, eu reivindico meu direito de querer ter dito exatamente aquilo que disse. Quando escrevo, não penso em levantar lírica, discussão, reflexão. Quando escrevo penso justo naquilo, e escrevo um cruzamento fértil de sentidos para que alguém desloque um pouco da linguagem que fala para o espaço da linguagem que sente. Quando escrevo, penso nas palavras, mas elas me vêm hipertextuais. Vêm coligadas, plantam-se. Não penso no além delas. Penso nelas, na música, no ritmo e adoro uma rima. Não dou um poema por acabado enquanto ele não me cede a rima que tem, sempre tem. Quando não rima, ao menos uma vez, parece-me mutilado. E quando as sílabas podem ser lidas quase cantadas, aí é que me dou por satisfeita e me regalo. Quando escrevo, penso por escrito. Não calculo, não domino, não limo, não burilo. Quando escrevo, tenho dito. Conto em outros tempos, ele havia sido meu amante preferido. era grosseiro, louro, louco, bebum e bélico. e o mais interessante: tinha uma noivinha. andava quase sempre com a aliança brilhante na mão esquerda, o que lhe caía muito bem. dizia que a noivinha também usava o anel com orgulho. e eu achava aquilo uma graça. quando ele ia se encontrar comigo em nosso hotelzinho de quinta, ele me dizia pra esperar, voltava do banheiro cheio de gotas d'água pelo corpo, cabelos molhados e sem a aliancinha. e eu, alegria, pedia pra ele colocar o anelzinho no dedo, que queria ver. ele ficava um tanto constrangido, mas atendia. ele sempre me atendia. quando eu pedia pra ir mais rápido, mais devagar, pra sair, pra entrar, pra rir, pra chorar. ficava um pouco corado quando eu pedia pra bater, mas acabava atendendo aos meus pedidos sussurrantes. mas naquele dia, ele teve qualquer acesso de fúria que não compreendi. foi quando pedi que, da próxima vez, ele trouxesse a noivinha. ele saiu de cima de mim num rompante, mudou da voz de tolo para a voz de macho, apontou em minha cara o dedo em riste e disse, quase sem categoria: "ela não. mantenha-a fora desta putaria". não entendi, mas confessei: "eu adoro o cheiro que fica em você, o da sua noivinha". Esta é pra quem ainda não havia me visto assim... Ana Elisa Ribeiro |
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