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Quinta-feira, 3/6/2004
Vida Nova, de Claudio Lampert
Ricardo de Mattos

Diário. Na intimidade, é o registro feito pela pessoa de factos ocorridos e situações vivenciadas no dia ou na semana e que lhe importaram. Muitos do possuidores de certa sanha pela escrita começam pela anotação da jornada. Alguns ficaram famosos, como o de Montaigne em viagem, o de Samuel Peckins, o de Kafka, o de Brecht. Já andei escrevendo um diário, porém com fim próximo ao terapêutico e auto-ministrado. Havia um novelo de pendências de natureza variada e estranhas à jurisdição do padre-confessor, de forma que escrever ajudou-me a resolvê-las. Tanto é que o caderno encontra-se hoje rigorosamente guardado n’uma gaveta e acredito que já esteja na hora de conhecer o fogo.

Dada a particularidade d’esta escrita, não afastada a introspecção que me é característica e cultivada, tenho como atestados de boçalidade estes diários virtuais – blogs – praticados em hodierno. O tom é sempre pessoal, quer referente a fatos pessoais, quer a fatos gerais. A Pitchula escreve sua opinião sobre a Guerra do Iraque, talvez crente de que o Times, o Le Figaro, o excelente New York Times, o Estado ou a Folha de São Paulo publicarão matérias embasados n’ela. Já visitei inúmeros diários e houve época em que acompanhava alguns regularmente. Quem me trouxe à razão foi Paul Valéry, n’uma tarde de sábado. Passei metade do tempo lendo blogs e a outra metade lendo Degas Dança Desenho. A certa altura fechei o volume e pensei: “Como é então que em vez de ler esta maravilha, eu gastei meu tempo com o blog do Jerico”?

Quem entra n’uma sala virtual de bate-papo – “chat” – nota ou uma coluna ou uma barra com os apelidos usados pelos presentes. Alguns d’estes apelidos parecem uma reivindicação pela volta do período da Evolução durante o qual andávamos pelas árvores. Pois bem, como um diarista virtual – vulgo “blogueiro” – relaciona-se com outros da mesma espécie, coloca ao lado de seu texto o link de acesso ao diário do colega. Assim, um conjunto de blogs assemelha-se a um imenso “chat”, com sua coluna de apelidos, textos mal escritos, referências mútuas, brigas e camaradagem. É desanimador. Um adolescente quer mostrar-se familiar às referências literárias e jornalísticas dos mais velhos. Inventa que aos dez anos já acompanhava seu pai a assistir Manhattan Conection e desde então admirava Paulo Francis, mesmo não entendendo sobre o que ele falava, mas tendo a intuição de que ele estava certo. Outro cisma que o melhor da literatura brasileira actual é produzida em blog, talvez querendo justificar a própria adopção do modismo. O silogismo é primário: o melhor da literatura brasileira actual é escrita em blog/eu escrevo em blog/logo, produzo o melhor da literatura brasileira atual. Clarah Averbuck está aí para confirmar.

A devassa do íntimo é uma falha, uma imperfeição superável com o crescimento cultural. Alguns vivem de explorar factos que julgam marcantes em suas longas vidas de vinte anos. Se o leitor perguntar-se à leitura de cada blog “para que eu preciso saber disso?”, o gênero será abandonado em instantes. Não se pode, de forma alguma, dizer que fazem Literatura. Não há de sua parte disposição inventiva que os leve a criar personagens, enredos, ou a realizar as pesquisas necessárias para um texto ficcional ou ensaístico de valor. Quando muito, fantasiam-se conforme convém-lhes e vivem de interpretar alguma figura, assemelhando-se a mímicos de rua ansiosos por atenção. A situação é agravada com a publicação de maus livros, d’entre os quais poucos merecem atenção. Daí o Zitinho é promovido da categoria de arremedo de escritor para a de “escritor principiante”. Sugiro às editoras, pelo bem da leitura de qualidade, o critério de seleção baseado na posse ou não de um blog pelo autor do original candidato à publicação. Se o autor possui um blog, a publicação do original será vetada sumariamente. Se não possui, mas após a eição do livro inaugurar um blog, a editora terá justa causa de rescisão contractual.

Dos poucos a merecerem leitura, encontra-se o livro de crónicas de Claudio Lampert (1.966), portador do dantesco título Vida Nova. É a reunião dos textos escritos o primeiro no final de Novembro de 2.002 e o último em meados de Agosto de 2.003. Como apareceu ainda no ano passado, não esconde o entusiasmo e a pressa de sua publicação. As crónicas são marcadas pela origem: o “eu” observa o mundo e transmite suas opiniões.

Pelo que leio na apresentação, houve um blog denominado Epinion que evoluiu para um sítio literário homónimo, no qual as crónicas eram publicadas às terças-feiras. Caso o volume fosse composto apenas pelas de 2.002, não mereceria um lançar d’olhos. Entretanto, a qualidade do texto cresce conforme a quantidade de palavrões e o esforço pela informalidade decrescem, quando o autor resolve deixar de lado certa familiaridade forçada – que parece típica de escritor fluminense. O resultado é o livro começar mau e atingir aquele ponto no qual o leitor sempre quer “ler mais uma” antes de cerrá-lo. Se Lampert em poucos meses superou seus pares iniciais, poderá avançar muito mais, conforme sua disposição e dedicação, dependendo também do seu objectivo a atingir.

Livro & Música

O Deserto dos Tártaros, de Dino Buzzati (1.906/1.972) foi o melhor livro que li este ano. O jovem tenente Giovani Drogo é nomeado para um posto no velho e inútil forte Bastiani – n’uma fronteira italiana –, construção tendo d’um lado montanhas, e do outro, um deserto. Maior paz não pode haver. Tão pacífico e monótono o local, que os habitantes passam a desejar alguma guerra, alguma batalha, inventam alarmas. Apesar d’isso alguns dos oficiais, inclusive o próprio Drogo, vincularam-se ao local da maneira mais sólida, que é a da aceitação, motivados por uma inexprimível inclinação. Buzzati escreve sobre existências inteiras dedicadas à espera de uma ocorrência que muitas vezes não se dá. Escreve também sobre quem espera, prepara-se, mas é frustrado de algum modo. Pense-se no cientista morto após estudar a vida toda a cura d’uma doença, cura esta descoberta pelo discípulo que retomou seus estudos. Já na velhice, sendo o forte realmente ameaçado, o doente Drogo é enviado à cidade para seu quarto ser utilizado pelas tropas que chegam. O tempo passou, essa passagem era quase tocável. A leitura d’esta obra casa-se muito bem com a audição do famoso Concerto número 2, opus 18, para piano de orquestra, de Rachmaninov, principalmente depois de descoberto um relógio nos graves acordes iniciais.

Para ir além








Ricardo de Mattos
Taubaté, 3/6/2004

 

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