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Terça-feira, 15/6/2004
Uma grata surpresa
Luis Eduardo Matta

A primeira impressão que um leitor mais rodado tem ao iniciar a leitura de A Idade Perfeita (tradução de Y.A. Figueiredo; Rocco; 157 páginas; 2003) é de um indisfarçável déjà-vu. Isso porque enredos sobre a reminiscência de intensos amores proibidos, perdidos nas brumas do passado, porém ainda perturbadoramente acesos na memória e no coração do narrador, já foram incansavelmente explorados em vários campos da ficção. A impressão, felizmente, é passageira e o que o avançar das páginas deste cativante romance, ambientado no interior da Sicília nos revela é a sensibilidade de um hábil escritor italiano, Roberto Cotroneo, ainda desconhecido no Brasil, que, pouco a pouco nos envolve numa teia de acontecimentos, centrados num sugestivo e sensual triângulo amoroso.

O protagonista do livro é um professor italiano, que imerge nas lembranças de uma paixão avassaladora vivida com duas jovens irmãs, Francesca e Nunzia Pirandello, paixão esta deflagrada pela leitura de trechos do Cântico dos cânticos, texto de Salomão presente no Velho Testamento. Os versos bíblicos, uma metáfora do amor a Deus, que enaltece a pureza e a inocência, transformam-se, no livro, numa poesia carregada de sensualidade, utilizada como uma espécie de código de comunicação entre o professor e suas duas amadas. Foi Francesca, a irmã mais velha, quem se valeu, primeiro, do artifício. Nessa época, ambos moravam na Alemanha; ele, lecionando italiano e ela, acompanhando a família e o pai, que dava aulas de filologia romana. Tempos mais tarde, o professor decide viajar à pequena cidade siciliana à procura de Francesca e é contratado por uma escola para ensinar latim e grego. Lá ele conhece Nunzia, de 16 anos, única aluna entre seis homens matriculados na classe. Quando, durante uma aula, ele declama o Cântico dos Cânticos, Nunzia assimila os versos como sendo uma mensagem para ela e o que surge daí é um ardoroso romance e uma obsessão irrefreável do professor pela jovem, que passa a ocupar todos os seus pensamentos, fazendo com que a paixão por Francesca, forte o bastante para haver motivado a sua vinda à Sicília, vá minguando até praticamente desaparecer.

Narrando na primeira pessoa, Cotroneo - escritor laureado em 1996 com o Selezione Campiello, um dos principais prêmios literários da Itália pelo seu romance Presto con Fuoco (tradução de Marco Lucchesi; Record; 240 páginas; 1999) - nos conduz pelos labirintos dos pensamentos do protagonista e consegue reproduzir os sons, cheiros e a atmosfera ao mesmo tempo singela e opressiva da pequena cidade siciliana, cuja população provinciana, em dado momento, descobre que o romance do professor com Nunzia teve origem na leitura de um texto sagrado e se revolta, julgando tratar-se de um ato demoníaco. O grande diferencial deste livro para outras narrativas do gênero, além da intensidade da história, é a presença de duas personagens "inanimadas", por assim dizer, mas que no livro ganham uma relevância tão grande quanto a dos próprios protagonistas, a ponto de se tornarem fundamentais: a primeira, os próprios versos bíblicos, cujo sentido, dependendo da mente que o interpreta, pode oscilar entre a pureza religiosa e a lascívia explícita. Um argumento bastante interessante nos dias que correm, quando textos sagrados como a Bíblia e o Corão, vêm sendo sistematicamente utilizados por governos, terroristas e oportunistas para manipular opiniões, arregimentar rebanhos de fanáticos simpatizantes e justificar ações injustificáveis. A segunda, é o exótico e vasto jardim interno erguido por um arquiteto alemão no antigo e decadente casarão barroco dos Pirandello, indevassável aos olhares da rua, cercado por muros inexpugnáveis e permeado por uma atmosfera encantatória de magia e mistério, onde Nunzia, para quem o Cântico se tornara "um breviário, um manual escandaloso para uso pessoal" conduz o professor até o abrigo de uma romãzeira e, inspirada pelos versos, lambuza a boca com o vermelho do néctar das romãs doces, ofertando-as a ele como se fosse um vinho.

Se há um problema neste livro, ele se encontra na estrutura um pouco confusa da narrativa, que evidencia um compromisso muito maior do autor com o lirismo do que com a clareza. Muitas vezes as frases se embolam, alterando o ritmo da história e fazendo-a se perder, temporariamente nela mesma até se reencontrar em seguida. São, contudo, pecados menores que estão longe de obscurecer o brilho deste lindo romance, que nos leva a uma idílica incursão por paisagens e sentimentos, embriagando o imaginário de todos nós com uma leitura atraente e enternecedora.

A Primeira Noite de Um Homem causa furor nos palcos do Rio

O circuito cultural carioca entrou em polvorosa com a estréia da versão teatral de A Primeira Noite de Um Homem, eternizada no cinema na pele de Dustin Hoffman e Anne Brancoft e, aqui, protagonizada por Vera Fischer, que no ensaio geral, realizado na segunda-feira, dia 7 de junho, entrou em cena usando um par de sapatos vermelhos e nada mais. Para quem não se lembra, A Primeira Noite de Um Homem, clássico da cinematografia dos anos 60, época de fortes contestações morais e sociais, narrava os conflitos do jovem Benjamin Braddock (Hoffman), que ao regressar à sua casa após se formar na universidade, era seduzido por uma amiga de meia-idade dos seus pais, a Sra. Robinson (Brancoft). Sua paixão, contudo, era a filha desta, Elaine (Katharine Ross). É interessante notar que, na vida real, a diferença de idade entre os dois protagonistas era de apenas seis anos (Hoffmann tinha 30, enquanto Brancoft tinha 36). A peça foi escrita há quatro anos por Terry Johnson e já foi estrelada, na Broadway, por ninguém menos do que Kathleen Turner.

Não sei como foi feita a adaptação teatral, dirigida por Miguel Falabella. Aliás, tenho ido ao teatro menos do que deveria e gostaria. Talvez porque, numa das últimas vezes, eu tenha sido levado involuntariamente ao palco para uma performance interativa, cujo patético resultado (que, por uma questão de bom-gosto, prefiro me reservar o direito de não descrever aqui), não me pareceu tão engraçado a ponto de justificar as intensas gargalhadas que se multiplicavam na platéia. No caso de A Primeira Noite..., imagino que haverá uma grande afluência de público, atraído principalmente pelos atributos físicos de Vera Fischer. Isso, para mim, é um pouco preocupante porque me passa a impressão cada vez mais nítida de que o teatro, enquanto veículo de expressão cultural e artística, está se vendo forçado a adotar recursos mais agressivos para conquistar uma platéia que dá mostras de estar constantemente prestes a debandar. É claro que é sempre agradável ver uma bela mulher nua ao vivo, ainda que seja no palco. Inclusive porque, a nudez de Vera Fischer, de certo modo, reforça a histórica vocação do teatro como um espaço livre, onde é possível ir até as últimas conseqüências em nome da liberdade criativa e de pensamento. Essa vocação deve ser mantida e enaltecida. Esperamos, apenas, que o público, cada vez mais culturalmente empobrecido e impaciente com textos mais complexos, que não satisfaçam sua necessidade imediatista de humor raso e, por vezes, grotesco, não se vicie com iniciativas como essa ou então, na próxima geração, o "grande teatro", tal qual conhecemos, poderá ser condenado a uma página mofada do passado e os palcos sobreviventes, terão se convertido numa acanhada sucursal dos modismos televisivos e dos caprichos do ibope.

* Para quem quiser conferir, A Primeira Noite de Um Homem, está em cartaz desde sexta-feira, dia 11 de junho, no Teatro Clara Nunes - Rua Marquês de São Vicente, 52 - Shopping da Gávea, Rio de Janeiro.

Luis Eduardo Matta
Rio de Janeiro, 15/6/2004

 

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