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Quarta-feira, 16/6/2004
O amor e as prateleiras de livros
Ana Elisa Ribeiro

Os eventos literários (salões, bienais, feiras e similares) pululam pelo país. Embora nem sempre sejam bem-divulgados e vária vez não estejam no "eixo", acontecem com veemência e de vez em quando tornam-se badalados, cheios de celebridades novas e velhas, convincentes ou não.

Num desses eventos, comprei certa vez um livro de editora portuguesa. O autor é Miguel Esteves Cardoso. O título, uma das melhores denominações que conheço, é O amor é fodido. E o narrador, a certa altura, diz sobre a mulher que amava que seu sonho (o do narrador) era viver com alguém com quem pudesse dividir seus livros.

Entendo o fragmento não como uma divisão comungada da coisa física, objeto livro, mas como o gosto delicioso de dividir momentos de leitura, comentar obras, falar mal e bem, comprar coisas novas e compartilhá-las, xingar a mancha de café acidental, a dobra na orelha, a ordem alfabética na estante, ler trechos em voz alta, achar bonito, achar ruim, ler no banheiro e sair tecendo críticas.

Pra uns, o amor é andar de mãos dadas na rua, pagar a conta, dar beijos de língua, dirigir com a mão no joelho. Pra outros, o amor pode ser ler trechos de livros. E eu me senti como Esteves Cardoso.

Meu sonho talvez não fosse configurado o bastante para que eu me desse conta disso, mas queria conviver com um homem que me lesse uns trechos de contistas contemporâneos. Também queria mostrar a ele uns poemas portugueses da nova safra. Traficar uns livros raros e ir a lançamentos interessantes. Ler meus próprios poemas e pedir uma opinião zelosa. Discutir a capa, a lombada e as cores.

No entanto, minha estante sempre foi apenas minha. Alta e estreita, nela cabiam meus contistas favoritos, meus poetas de escolha. Nas prateleiras mais altas ficavam os romances estrangeiros, com ênfase nos italianos. Na altura dos olhos, os contistas contemporâneos brasileiros, muitos dos quais tenho o prazer de conhecer. Na altura do coração, os poetas... de Aretino a Luiz Roberto Guedes (com sua ana k deslumbrante). Embaixo, fechados atrás das portas, uns livros dos quais tenho vergonha. E a estante era formada pela minha mania de ordem.

E foi surpreendente quando senti ciúmes das minhas prateleiras. Senti uma ponta de indisposição quando tive que ceder parte do móvel para os livros dele, uns poetas e uns contistas que não aprovo, uns romances que não me cheiram bem, um espaço que era meu e eu nem sabia que poderia caber alguém mais.

Mas o amor tem dessas coisas. Pode não ser tão fodido quanto o de Esteves Cardoso, que me soa até mesmo ambíguo (Fodido de bom? Fodido de ruim?), mas é divisor de águas, de espaços, de leituras. Quantas pessoas mais gostariam de conviver com alguém que compartilhe textos? Com quanto carinho se fazem os livros de escritores que se unem a outros escritores, roteiristas, jornalistas, programadores visuais, revisores?

As novas tecnologias de busca...
...permitiram que eu escolhesse um apartamento para alugar sem ter que ir olhá-lo de perto. Foi fácil entrar na Internet e ver aquela fotografia (meio enganosa, claro). Quando entramos no apartamento pela primeira vez, já com a intenção de alugar, tivemos a impressão de que a sala era grande e de que tudo ali era simpático. Com todas as desvantagens de morar em prédio grande, a vista das janelas de quartos e salas valia a pena! A vista, sim, era algo que me deixava tranqüila. Às vezes porque dali eu achava que poderia voar, outras vezes porque pensava em suicídio. Quando pusermos telas nas janelas, será para proteger Eduardo e a mãe. Talvez o pai, enlouquecido pela convivência com uma virginiana agudíssima. E então alugamos aquele apartamento pequeno, cujos cômodos mal caberiam nossos móveis de solteiros. Quando a casa foi se enchendo com as coisas necessárias, entramos em colapso. Como quem resolve equações matemáticas, passamos dias pensando e desenhando a melhor disposição para tudo. E descobrindo nossos hábitos e nosso gosto diferente para móveis, estilos, cores. Agora que as coisas estão no lugar, entramos no apartamento e encaramos uma sala apinhada, cheia de alturas diversas e cores mais ou menos agrupadas. Não há quadros nas paredes ainda, mas há copos espalhados pelas mesas. Quando as velas forem acesas, a casa ganhará ares pessoais. O cheiro de mofo vem dando lugar ao cheiro de poeira dos livros.

Mas quando o inverno se instalar de vez, Eduardo vai chegar. Quando ele chegar, o apartamento estará esperando por ele. E então os amigos estão convidados para um jantar à luz das nossas velas.

Ana Elisa Ribeiro
Belo Horizonte, 16/6/2004

 

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