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Terça-feira, 22/6/2004
Da música eletrônica ao romance egípcio
Fabio Silvestre Cardoso

À época do lançamento do disco Mutations, em 1997, o cantor e compositor norte-americano Beck sugeriu que os estilos musicais já haviam sido todos criados. Nesse cenário, restaria aos artistas, de um modo geral, fazer variações com misturas e referências tão ecléticas quanto inusitadas. (Beck, por exemplo, tem uma canção chamada "Tropicália" que mescla a bossa nova com os samplers eletrônicos). No Brasil, a música eletrônica, o novo enfant gaté do cenário pop, tem feito coro ao discurso de Beck. Em muitos casos, tem ido além. Mais do que utilizar samplers e referências da MPB dos anos 60 e 70, a nova onda que ora aparece é a auto-referência. É o caso do álbum Trama DB Sessions, by DJ Patife e Mad Zoo (tomara que Ariano Suassuna não leia o nome do disco tampouco a alcunha dos autores). Ao que parece, o objetivo é, como se podia esperar, casar nossa música com a diversidade rítmica sedutora do estrangeiro. No entanto, a sensação que o ouvinte tem é que muito já se conhece desse enlace e, para o bem e para o mal, não se pode esperar muito dele daqui para frente.

Isso se deve ao fato de que muito do que consta no disco - apesar do tom de ineditismo da parceria - não avança no que se refere à experimentação de estilos e ritmos. A impressão que se tem, aliás, é de que já ouvimos essa fórmula alguma vez, ainda que sejamos incapazes de dizer quando. Exemplo disso são as faixas que contam com a participação especial de Fernanda Porto, como "Amor errado", "Sambassim" e "Tudo de bom".

Evidentemente, os amantes deste gênero não vão notar nesse detalhe uma desvantagem, uma perda. Pelo contrário. O fato dessas Sessions soarem conhecidas faz com que o público adepto do D&B reafirme a sua opção cativa pelo estilo. E as "batidas" de "Noite do prazer" e "Sem pensar" se encaixam perfeitamente nessa linha. Ressalte-se, contudo, que foi justamente a ruptura - em algum momento, lá atrás - a partícula fundamental para que essa mescla de gêneros se tornasse cool. Ao "remixar" o repertório já trabalhado, Patife e Mad Zoo pecam pela falta da mesma ousadia que os alçaram à Europa como figuras célebres no campo da música eletrônica.

A batalha de Tebas de Nagib Mahfuz

A lista de laureados com o Prêmio Nobel de Literatura é tão diversa quanto extensa. Nem todos concordam com os vencedores - o que é, de certa forma, natural. Há, inclusive, quem diga que a premiação se deve à influência política em detrimento do juízo estético deste ou daquele escritor (isso explicaria, por exemplo, a vitória de Sir Winston Churchill em 1953, bem como a do escritor russo Alexsander Soljenítsin, em 1970). Com efeito, o fato é que graças a notoriedade de um Prêmio desse porte muita gente trava contato não somente com autores e narrativas até então desconhecidas, como também com culturas que, de uma forma geral, estão fora da realidade de boa parte dos leitores comuns. Vencedor do Prêmio Nobel em 1988, o escritor egípcio Nagib Mahfuz é um bom exemplo disso. Em A batalha de Tebas, publicado originalmente em 1944 e que agora sai pela editora Record, o romancista consegue aliar o que há de melhor nas descrições dos costumes de uma cultura às discussões que são universais no âmbito da literatura.

No final do Médio Império, o Egito Antigo (dos quinhentos anos) esteve sob o domínio dos hicsos, cuja principal característica era a violência com a qual se instalou durante três dinastias na capital Mênfis. A história do romance versa sobre esse período conturbado na região. Na primeira parte, narra as circunstâncias da morte do faraó Sekenen-rá e a tomada de poder de Tebas pelos hicsos. Já na segunda, passados dez anos, aborda a vingança planejada pelos descendentes de Sekenen-rá. Depois, no desfecho, descreve a batalha final de Ahmus, herdeiro e vingador da morte de Sekenen-rá, contra os usurpadores hicsos. Em que pese a perspectiva histórica e religiosa, a obra é um clássico romance de aventura, cujos heróis e vilões têm seus perfis registrados, assim como o cenário onde a ação se desenvolve - neste caso, as cidades que servem como campos de batalha - é desenhado pela contundente e precisa escrita do autor egípcio.

Desse modo, são descritos, inicialmente, os acontecimentos que antecedem o "golpe de Estado". Desde a visita do porta-voz dos hicsos até o conflito propriamente dito. Nota-se, a partir disso, como os detalhes são amarrados para que exista a compreensão não somente do ocorrido, mas também dos meandros que cercam a tradição dos faraós egípcios. Nesse aspecto, a devoção deste povo pela fé e pelo simbolismo, mais precisamente pelo culto às imagens, fica evidente em algumas passagens: "Meu senhor, certamente o deus Amon não aceitará que se construa, junto ao seu, um templo para Set, o deus do mal; nem que a sua límpida terra se sacie com o sangue dos hipopótamos sagrados; e nem que o guardião de seu reino se despoje de sua coroa, tendo sido ele o primeiro governador do Sul a usá-la por sua ordem. Não, meu senhor, Amon não aprovará isso nunca". A propósito, é curioso observar que uma crítica comum que se seguiu ao livro de Mahfuz foi a de que a obra, talvez por ter detalhado alguns ritos e tradições, se imponha pelo nacionalismo egípcio. Entretanto, faz-se necessário lembrar que esse "nacionalismo" também existe em outros exemplos da literatura universal - tal como A cidade e as serras, de Eça de Queiroz, ou, no século XX, na trilogia do escritor americano William Faulkner O Povoado; A cidade; e A mansão, para citar dois exemplos. Em verdade, a crítica à obra de Mahfuz se dá pelo fato de boa parte dos leitores não enxergar o escritor (e sua obra) longe dos temas que seriam "naturais" a um autor árabe, como as lendas e o misticismo recorrente nas histórias. No entanto, o que se vê é o desenvolvimento de uma narrativa com temas elementares tanto ao interessado ou como ao desinteressado na história dos faraós e dos egípcios em geral.

Tome-se a descrição dos conflitos como exemplo. É certo que muito já se leu sobre esse tipo de narrativa. Ainda assim, Mahfuz explora como ninguém os recursos da linguagem para trazer o ambiente para os olhos do leitor. Como ocorre na morte de Sekenen-rá: "Naquele momento trágico, foi atingido por uma flecha que lhe atravessou o braço, fazendo com que a espada caísse de sua mão trêmula. Muitos soldados da guarda real gritaram: 'Cuidado, senhor, cuidado!' O adversário, porém, fora mais rápido que o aviso, desferindo-lhe um golpe no pescoço com todas as suas forças. (...) Ouviam-se os gritos dos egípcios por todos os lados: 'O rei está caído...Lutem por nosso rei'". Em outra passagem, nota-se a bela articulação entre a descrição da atmosfera e o caráter das personagens: "Deparou-se com um rosto que reunia beleza e orgulho, pois manifestava sedução e inspirava reverência. Seus olhos azuis denotavam superioridade e determinação. Ela não fez caso da saudação; ficou olhando o lugar onde estava o anão e perguntou com voz melodiosa, encantando os ouvidos de quem escutava".

Em certa medida, A batalha de Tebas também pode ser lido como uma interpretação da rica História do Egito, que, apesar de muito explorada em documentários, ainda possui seus detalhes escondidos do grande público, assim como a literatura moderna daquele país. Nesse sentido, a obra de Nagib Mahfuz - que tem outros livros publicados no Brasil (O Beco do Pilão, O jogo do destino) - é uma grande porta de entrada.

Para ir além





Fabio Silvestre Cardoso
São Paulo, 22/6/2004

 

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