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Quarta-feira, 7/7/2004
Brasil em alemão
Daniela Sandler

O comercial é para um dos principais serviços de telefone celular alemão. A primeira imagem é uma tomada aérea, de face pro chão, correndo quase em close-up sobre os topos de uma cidade moderna, arranha-céus em preto-e-branco. Uma colagem de imagens igualmente belas e estilizadas se sucede: icebergs, rochas no deserto, e novamente a cidade cinza e prata: ruas, o interior de um edifício arrojado de paredes curvas, a luz que jorra da fachada de vidro. Na última cena, outra vista aérea, desta vez distante, mostra o mar de prédios altos entremeados pelas linhas pretas das ruas. A seqüência de imagens é rápida, estilo videoclipe, acompanhada por música sugestiva, como a dizer: o futuro é aqui, no pequeno telefone prateado de tecnologia avançada, competindo no mercado acirrado de telefonia celular da Alemanha.

Tão rápida a seqüência, que demoro a me dar conta de um estranho reconhecimento. O que me é tão familiar? Por certo não é a elaborada fantasia high-tech – nem o telefone, porque celular eu não tenho. Só uns dias depois, quando vejo o comercial de novo, entendo: a metrópole contemporânea, arquetípica, avançada, nada mais é que a minha cidade natal. São Paulo. Anônima, fantasiada em cenário futurista, cinzelada nas formas quadradas e angulares (com a curva ocasional) de sua arquitetura moderna. Servindo de fundo genérico pra vender celular alemão. Evocando Frankfurt, ou Nova York. Quase não a reconheço, e preciso ver o comercial várias vezes para ter certeza: o primeiro prédio em close-up é mesmo o Conjunto Nacional, dá até pra ver de relance o letreiro do Itaú; a panorâmica final é centrada no eixo largo da Avenida Paulista, ladeada pelos picos das antenas.

Os alemães têm notória fascinação pelos trópicos, preocupação com desigualdades sociais, e interesse especial pelo Brasil. Mas, no caso do comercial acima, a intenção não é mostrar São Paulo ou fazer uso das características particulares da cidade – do contrário, a imagem é desvinculada de sua origem. Será apenas um caso inócuo, esse proveito da forma sem conteúdo e sem crédito? O comercial do telefone celular não é único. Um anúncio para uma marca de chá pronto faz uso semelhante da cidade, mostrando a rotina de uma moça bonita e esbelta. Ela atravessa uma rua movimentada, no meio da multidão, com arranha-céus de fundo – de novo a avenida Paulista, vista do chão, delatada por seus semáforos pretos e retangulares. A moça vai trabalhar, um espaço moderno, envidraçado; depois faz jogging no Ibirapuera, diante do lago, a cidade ao fundo.

De novo, a cidade está estilizada e quase irreconhecível; de novo, filmada em belo preto-e-branco, São Paulo aparece bonita e limpa, sem papel no chão ou mendigo na calçada, realçando as formas simples e cristalinas da arquitetura de concreto e vidro e a textura rica da paisagem urbana. Quem não conhece os semáforos da Paulista não reconhece a avenida na cena rápida. Mas eu cresci brincando no Ibirapuera e só por isso posso jurar avistar a Assembléia no pano-de-fundo do jogging no parque.

E não é só. Uma propaganda de refrigerante mostra um vigia de museu “energizado” pela bebida, deslizando pelo piso amplo e rampas curvas do Pavilhão da Bienal, também no Ibirapuera, disfarçado com um letreiro em alemão. Usar um vigia de museu como garoto propaganda é, para ser justa, uma idéia bem alemã (e não apenas neste, mas em outros comerciais!). E museu, aqui na Alemanha, não falta. Por que, então, filmar na Bienal, no prédio desenhado por Oscar Niemeyer – sem que, de novo, a identidade do local seja revelada?

Ícone esvaziado

Assim como esses três, há outros comerciais em que figuram lugares do Brasil – ruas cariocas, prédios de Brasília – sem identificação. Suspeito que seja mais barato produzir os filmes comerciais no Brasil, ainda que o produto seja alemão. Mas não é apenas o aproveitamento de mão-de-obra barata que torna intrigante nossa presença silenciosa. Afinal, o trânsito de produtos e dinheiro entre empresas sediadas no primeiro mundo e suas filiais mal-pagas não é novidade. Interessante é o trânsito paralelo de imagens em que a metrópole complexa e contraditória que é São Paulo se torna um ícone esvaziado de seu significado original. O contexto histórico no qual a cidade se desenvolveu, as circunstâncias presentes que a sustentam, o intrincado tecido de relações sociais, econômicas, culturais e políticas que transformam os espaços da cidade – é como se tudo isso tivesse evaporado, deixando em seu lugar o esqueleto desértico de caixotes de concreto e aço.

A imagem da cidade é usada para lucro alheio, a baixo preço, perpetuando a desigualdade econômica entre países (metrópole e colônia) de modo semelhante às sweatshops da Nike na China – guardadas as devidas proporções entre as condições de trabalho numa produtora publicitária brasileira e uma fábrica de tênis chinesa. Ao mesmo tempo, a cidade que aparece na televisão alemã não guarda vestígio dessa desigualdade. A pobreza some da cidade assim como o seu nome: e no momento em que São Paulo vira símbolo cosmopolita, deixa de ser brasileira e si mesma.

Índio, samba e futebol

Não admira. O Brasil que aparece identificado – em documentários, reportagens de tevê, filmes, revistas, eventos – representa no mais das vezes os estereótipos mais crassos, mais risíveis, dos quais nós brasileiros fazemos piada e que eu pessoalmente julgava ultrapassados. Assim, vejo um especial sobre uma pequena tribo indígena no Amazonas; um documentário sobre um refúgio de fugitivos nazistas no Paraná; outro sobre flores tropicais; uma reportagem sobre assistência social a comunidades isoladas do Pará; um filme curto sobre a utopia fracassada de Brasília (em que figuram tanto as formas “exóticas” da arquitetura de Niemeyer quanto as favelas das cidades-satélite).

As imagens estampadas na tela perpetuam o imaginário visual dos alemães sobre o Brasil: floresta amazônica, rio turvo e caudaloso cruzado em barco rústico, gente dormindo em rede, rua de terra batida, pouca roupa, esgoto a céu aberto, sol, planta, saúva, bola de futebol. Um comercial da Nike mostra – adivinhem! – a seleção brasileira, em todo o seu talento e também em seu comportamento emocional e impulsivo. Em shows, casas noturnas, e no “Carnaval das Culturas” (evento público que toma as ruas de Berlim no mês de maio), o Brasil aparece proeminente, com penas coloridas, fantasias, samba e capoeira bem ensaiada prá alemão ver.

Que ninguém me entenda errado: sim, a tribo indígena, a comunidade paraense, a favela e o samba são, é claro, coisas do Brasil. Coisas atuais, não apenas fantasia de gringo. Mas, da mesma forma que São Paulo perde sua complexidade e vira forma estilizada pra consumo rápido, essas todas outras identidades brasileiras também são simplificadas, reduzidas à carcaça do trio elétrico, consumidas sem reflexão numa noite de prazer, logo mais esquecidas. A consternação provocada pela filmagem da favela é também ela momentânea, perdida na sucessão de sensações (euforia e tristeza, diversão e seriedade) que nos servem a mídia e o nosso modo de vida.

Quando o Brasil vira moda

É desconcertante, a despeito de nossa presença considerável, continuarmos desconhecidos. Quanto mais vejo Brasil em Berlim, menos reconheço meu país e eu mesma. Agora é moda, por exemplo, usar agasalhos e camisetas amarelo-canário ou verde-bandeira, estampando em letras garrafais o nome de nosso país: isso mesmo, BRASIL. (Ao que consta, alguns verões atrás a moda era SUÍÇA ou ITÁLIA, no mesmo estilo e tecido, mudando as cores. Agora, além de Brasil, já aparece JAMAICA...) Não, não é uma manifestação silenciosa entre imigrantes ou viajantes brasileiros. É moda entre os alemães mesmo, e sem nenhuma intenção de expressar idéias políticas ou demonstrar impressões culturais. Sem nenhuma relação com o lugar ou evento no qual a roupa é usada. É o apelo puro da cor e da forma – até que a moda se sature e acabe.

A caipirinha é onipresente. Não há bar que não ofereça a bebida, feita com legítima Pitu: casa noturna tecno, sushi-bar, tratoria italiana, restaurante tradicional alemão, boteco de esquina. Batida de côco é vendida já pronta em garrafa e virou sabor de sorvete. Escrita assim mesmo, em português, e – milagre! – com o acento circunflexo na sílaba certa. Todo curso de dança de salão oferece, junto à salsa obrigatória, samba. Para completar, a rede de vestuário H&M – uma das maiores da Europa, uma espécie de McDonald’s da moda – espalhou pela cidade toda outdoors com modelos brasileiras de biquíni sob o sol do Rio de Janeiro. A coleção é inspirada na moda praia do Brasil, e algumas lojas fizeram até coquetel de lançamento. Eu mesma testemunhei a fissura pelo Brasil, quando cheguei em Berlim e ouvi de uma colega que todos os seus amigos alemães queriam me conhecer, simplesmente por eu ser brasileira.

Branca demais

Eu, que não sou porta-bandeira, acabei não os conhecendo. Conheci, no entanto, a outra face da mesma fissura, os estereótipos negativos. Como, por exemplo, ao ouvir de incontáveis alemães a mesma resposta surpresa ao revelar que sou brasileira: “Você? Brasileira? Mas a sua pele é tão branca, brasileiro é mais escuro!”. Ou, de uma vizinha que viu meu nome escrito na caixa de correio: “Nunca imaginei que você vinha do Brasil, pois ‘Sandler’ não soa nada português.” E, para coroar, de um conhecido que tem mestrado em História e cursa psicologia: “Você não é nada típica... A gente aqui nunca pensa em brasileiro como estudante de pós-graduação, como intelectual, ainda mais interessado por história alemã...” E, para meu imenso embaraço, ele completou, candidamente: “A gente pensa em calor, morenas, carnaval, futebol...” Fiquei envergonhada foi por ele, não por nossa identidade vilipendiada. Como pode um historiador que se diz liberal e de esquerda proferir em sóbria consciência o clichê mais raso e gasto sobre o nosso país?

Engoli a ofensa, perdoei como um lapso isolado. Até travar, meses depois, um diálogo com uma universitária sobre arrancar dente do siso. Eu expliquei meu medo por conta de uma experiência traumática na infância, quando tive de arrancar um dente-de-leite renitente que custou força e fórceps ao meu dentista. A dificuldade estava na implantação do meu dente e não na técnica do dentista. Mas a garota soltou assim, na minha cara: “Ah, mas também, onde foi que você teve o dente arrancando? No BRASIL?!? Também, o que você queria?”. Eu queria, claro, que ela soubesse que não apenas temos ótimos dentistas e recursos no Brasil, como muitas vezes até melhores que aqui – como sugere a nossa exportação de dentistas pra Portugal na década passada, e os dentes estragados de boa parte dos alemães que conheço.

Assim, vivemos uma espécie de realidade dupla. Ninguém aqui parece saber do Brasil metropolitano, dos bons dentistas, da produção acadêmica. O Brasil que aparece é a selva e a favela, assim destacadas da grande cidade. E a grande cidade, por sua vez, só aparece destituída de suas mazelas e de sua própria identidade, sem nome, sem origem. Não admira que sobre só o clichê.

Entendimento complexo

Pois para começar a compreender o Brasil é preciso abarcar suas contradições, presentes e históricas. Sua multiplicidade. Considerar a complexidade interna de nossa sociedade, ao mesmo tempo injusta e desenvolvida. E também sua ligação com o resto do mundo, com os países desenvolvidos, com sua história. Como pode um alemão não saber, por exemplo, que não apenas há gente branca e de sobrenome germânico, eslavo, italiano etc. no Brasil, como muitas dessas pessoas só foram parar no país por causa da Alemanha nazista?

Sim, muito alemão tem consciência da ameaça à mata atlântica ou da prostituição de menores. Mas essa consciência desemboca num tom paternalista, de papai-sabe-tudo, quando ignora os próprios avanços dentro Brasil no combate a seus problemas. E quando ignora a ligação perversa entre riqueza e miséria, em que uma se alimenta da outra – tanto a riqueza brasileira como a européia, ou americana.

Mas há sinais de uma relação mais produtiva e inteligente. Um pesquisador de uma ONG dedicada a combater injustiça fiscal no mundo (oásis fiscais, sonegação), a Attac, cita não apenas o contato entre europeus e brasileiros, como dá crédito especial a uma organização brasileira (a Unifisco) que já vinha desenvolvendo o mesmo trabalho independentemente. Eu mesma acabei de participar de um encontro para os bolsistas do Serviço Alemão de Intercâmbio Acadêmico (DAAD) em que, na palestra inaugural, seu representante fez questão de mencionar, em meio a inúmeras parcerias internacionais, uma que merecia destaque: a parceria com o Brasil, por meio da Capes e do CNPq. Foi o único país citado, diante de centenas de estudantes do mundo todo.

Essa atitude é essencial, não por sentimento de justiça patriótica, mas porque a colaboração entre indivíduos, organizações, idéias e ações é necessária ao desenvolvimento de cada país, e do mundo. Meu desabafo sobre os estereótipos não é de modo algum uma sugestão de que apenas nós, brasileiros, possuímos a inteira verdade sobre o que somos. O olhar estrangeiro é valioso, fundamental e inevitável. Até mesmo o olhar preconceituoso: analisando o modo como os alemães nos representam, aprendemos muito sobre os próprios alemães... Mas aprendemos mais quando os clichês são desfeitos. Podemos nos reconhecer e conhecer mais sobre nós mesmos por meio do que outros têm a dizer de uma perspectiva distanciada ou diferente. Uma relação de mão-dupla, em que a reflexão mútua (nós também podemos dizer algo sobre a Alemanha) fertiliza ambas as partes. Pois, vocês sabem, na nossa terra, em se plantando, tudo dá...

Daniela Sandler
Berlim, 7/7/2004

 

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