busca | avançada
59318 visitas/dia
1,7 milhão/mês
Quinta-feira, 22/7/2004
O marketing da mendicância
Adriana Baggio

Para se dar bem em um cenário competitivo, o importante é ter diferencial e agregar valor ao seu produto ou serviço. Fazer com que ele se destaque entre a quantidade imensa de produtos e serviços semelhantes. E para incrementar a rentabilidade, o segredo é aumentar o ticket médio de cada consumidor, já que ampliar a quantidade de consumidores é quase impossível em um mercado saturado como o nosso.

A terminologia mercadológica já está tão incutida no repertório do público comum, que até os leigos nessa área conseguem entender o que o parágrafo acima quer dizer. Muitos deles, mesmo não tendo exatamente um produto ou um serviço para oferecer ao mercado, adotam essa terminologia e essa filosofia para outras áreas de suas vidas, com o objetivo de obter melhores resultados. Com essa popularização dos conceitos e das estratégias de marketing, até mesmo os pedintes de rua já procuram usar esses ensinamentos para melhorar seu desempenho nos sinaleiros das grandes cidades.

Não sei se acontece em todo país. Vi em João Pessoa, ano passado, e tenho visto aqui em Curitiba. Nos cruzamentos mais movimentados, os motoristas podem aguardar a luz verde assistindo espetáculos circenses. São malabaristas, engolidores de fogo e contorcionistas que se revezam, tentando atrair a atenção e o dinheiro de quem está parado no trânsito.

Coitados dos simples pedintes, que não têm nada a oferecer. Esses estrangeiros (a maioria dos artistas que eu vejo são argentinos) chegaram com seu serviço diferenciado, tirando mercado dos necessitados que não têm nenhuma habilidade para mostrar, só mãos sujas e abertas para pedir.

Um dos argumentos que as pessoas usam para aplacar o sentimento de culpa e não dar dinheiro aos pedintes é que eles não fazem nada, não trabalham, ficam vagabundeando. Com os malabaristas é diferente, já que eles não estão apenas pedindo. Eles prestam um “serviço” aos motoristas parados no sinal, mesmo que este “serviço” não tenha sido solicitado. Além disso, eles realizam coisas inacessíveis para a maioria das pessoas, como engolir fogo ou equilibrar malabares. Já o que os pedintes fazem não requer habilidade nenhuma. Afinal, qual a dificuldade em ser um maltrapilho e ficar perambulando pela cidade pedindo dinheiro?

Fico imaginando a amargura dessas pessoas que foram escanteadas do mercado de mendicância. Que situação cruel: até para isso começam a valer as duras leis da concorrência. Sem poder competir com os prestadores de serviços mais sofisticados, a saída é fazer o mesmo que as empresas fazem no mercado de verdade. Quando não conseguem mais competir com o seu produto ou serviço original, passam a copiar o que a concorrência está fazendo. Normalmente, sem o mesmo know how e tecnologia, mas com a esperança de abocanhar uma fatia, mesmo que seja pequena, desse novo mercado.

Percebi essa lógica entre os pedintes ao observar uma menina em um dos sinaleiros da cidade. Ela não devia ter mais do que seis ou sete anos. Com a perspicácia que é peculiar às crianças, mesmo àquelas que têm um desenvolvimento físico e intelectual prá lá de comprometido, ela percebeu que deveria se adaptar às novas demandas do mercado. Para não ficar obsoleta logo no início da carreira, fez um benchmarking com seus colegas argentinos. Deve ter notado que as janelas dos carros abriam com mais facilidade para aqueles que se contorciam na faixa de pedestres.

A menina, ao invés de simplesmente ir até os carros com as mãozinhas abertas, se posicionou embaixo do farol vermelho e começou a fazer movimentos com o corpo. Levantava uma perninha, virava uma cambalhota e dava saltos no asfalto, meio sem jeito. Um pouco antes do sinal abrir, ela passava para recolher o pagamento pela sua apresentação.

Fiquei muito comovida com a cena. Meus sentimentos se alternavam entre a pena por aquela menina ter que se sujeitar a esse tipo de vida e a admiração pela sua inteligência, pela sua percepção clara e madura do mundo que a cerca. Fiquei com raiva dos pais dela, de todos os pedintes e também dos argentinos. Fiquei com raiva de mim mesma por não saber que atitude tomar. Dar dinheiro pela inteligência dela? Dar dinheiro porque ela estava prestando um “serviço”, mesmo que não solicitado? Dar dinheiro por pena? Acabei não dando nada, que é a minha atitude padrão, tanto para pedintes quanto para malabaristas de sinaleiro.

Mas se tivesse que escolher entre dar minhas moedinhas aos pedintes ou aos malabaristas, ficaria com os primeiros. Os pedintes só pedem, não oferecem nada. É claro que eles jogam com o nosso sentimento de culpa. São maltrapilhos, carregam bebês no colo, apresentam parentes deficientes e crianças remelentas. Mas pelo menos, argumento apenas com minha consciência e não estou sujeita às leis do mercado. Já os argentinos malabaristas se aproveitam do péssimo comportamento do brasileiro enquanto consumidor. Como consumir é status, não consumir é não representar um bom papel social. Por isso, ficamos envergonhados de recusar os antepastos, cartões de crédito e malabaristas que nos são impostos. Como sou o terror das balconistas, dos garçons e das operadoras de telemarketing, não tenho vergonha de dizer não aos acrobatas estrangeiros dos sinais, assim como digo aos pedintes.

Apesar de todas essas convicções, me sinto um pouco omissa e gostaria de contribuir mais com a sociedade. Talvez assim minha consciência de classe média não se sentisse culpada por negar moedas a pessoas que vivem tentando conseguir dinheiro durante os breves momentos que separam o sinal vermelho do verde.

Adriana Baggio
Curitiba, 22/7/2004

 

busca | avançada
59318 visitas/dia
1,7 milhão/mês