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Terça-feira, 20/7/2004
A Ditadura e seus personagens (I)
Fabio Silvestre Cardoso

No seu "aniversário" de 40 anos, a Ditadura Militar ainda rende assunto para intermináveis polêmicas. Tome-se como exemplo as reparações financeiras para as vítimas da Ditadura. Por conta disso, o jornalista Carlos Heitor Cony esteve no centro das atenções, uma vez que sua pensão mensal ficou estipulada em R$ 19 mil, sem mencionar a quantia retroativa de R$ 1,14 milhão, conforme consta na reportagem da revista Carta Capital da semana passada (14/07). E a polêmica tende a aumentar. Isso porque ninguém mais ninguém menos que o ex-marinheiro José Anselmo dos Santos, o Cabo Anselmo, também está atrás da indenização e tudo indica que, a princípio, nada impede que ele receba os direitos. Para quem não sabe, José Anselmo dos Santos é mais conhecido por ter deflagrado o golpe de 64 e, após ter participado dos principais movimentos de resistência, não apenas trocou a militância de esquerda, mas também ajudou a caçar os principais nomes que, à época, estavam envolvidos na luta armada. A trajetória de Cabo Anselmo e a sua versão dos acontecimentos sobre o ocaso da Ditadura Militar estão presentes no depoimento Eu, cabo Anselmo (Ed. Globo, 262 págs), escrito pelo jornalista Percival de Souza.

Lançado em 1999 (e relançado agora, por ocasião do aniversário de 40 anos do Golpe), o livro é o que se pode chamar de furo de reportagem. Tanto pelo que tem para revelar como pelo que fez, cabo Anselmo é um personagem difícil de ser encontrado. Assim, ele é fruto da pesquisa obsessiva de Percival de Souza, que o encontrou por acaso, quando fazia pesquisa sobre a vida de Sérgio Paranhos Fleury, outra peça-chave para que se possa entender o período de forte repressão da polícia política. É preciso que se diga, ainda, que Eu, cabo Anselmo é uma das principais fontes citadas pelo jornalista Elio Gaspari no livro A Ditadura Escancarada, que é parte da série "As Ilusões Armadas".

Com efeito, as lembranças do Cabo Anselmo são mananciais de informações sobre o antes, o durante e, até certo ponto, o depois do Golpe Militar. E o leitor passa a acompanhar a história como se fosse um thriller policial, graças ao estilo empregado por Percival de Souza. Contudo, o jornalista faz isso sem dar trégua aos fatos, que são sua matéria-prima, antes de se importar com o "tempero" da narrativa. Assim, em vez de abusar da adjetivação ou até mesmo da descrição exagerada das cenas, como se fosse um roteiro de cinema, Percival escolhe outra forma de dar veracidade aos fatos: mantém trechos inteiros com o depoimento do Cabo Anselmo.

Nesse sentido, o principal núcleo da reportagem é a mudança de lado de Cabo Anselmo. São inúmeras as passagens em que Anselmo prepara o terreno para explicar como, quando e, principalmente, por que essa mudança aconteceu. Ele sugere uma certa ingenuidade aliada à insegurança pelo fato de ter tomado algumas decisões na juventude, tais como ir para Cuba e adotar os mesmos princípios de esquerda, por conta da influência de alguns nomes importantes para o movimento revolucionário na época, como Brizola: "Não tinha toda a clareza e a profundidade do que significava Cuba nesse contexto, do que representava a revolução cubana, do que era realmente o comunismo na prática dentro de um país. Então, vamos para lá. Os intelectuais que a gente lia falavam da maravilha que era aquele tipo de coisa. Uma sociedade igualitária! A cada um segundo o seu trabalho! E depois, a cada um segundo sua necessidade. O marxismo ainda era nesses tempos, com a formação que recebíamos, algo muito incipiente. Eu nem mesmo podia compreender como Brizola poderia se aliar a Fidel Castro e ter condições para mandar treinar gente em Cuba. Não dava para entender esse tipo de coisa com clareza".

Mesmo não entendendo, Anselmo partiu a Cuba e viu as "maravilhas" que os então revolucionários louvavam. E é interessante notar, como se lê no livro, que Anselmo só vai ter a consciência do que estava fazendo quando participa de uma intrincada rede de conexões entre os agentes da esquerda. Só ali, afirma, ele pôde compreender quais eram os (muitos) erros de um núcleo que tentava alcançar o poder, assim como seu personalismo e suas contradições. Percival de Souza sabe, e faz com que o leitor tome conhecimento também, que se trata de alguém que possui profundos ressentimentos com o grupo que critica. Ainda assim, não há como não perceber a lucidez de Anselmo ao analisar as contradições de um projeto que, embora presumisse a tomada do poder, não tinha sequer teorias próprias, apenas idéias fora do lugar.

Assim ocorre quando o ex-marinheiro vai para Cuba com o objetivo de receber treinamento de guerrilha na ilha governada por Fidel Castro. Lá, para o bem ou para o mal, ele descobre como a situação do povo, para quem a revolução foi feita, é precária, a despeito da educação e do sistema de saúde que são modelos. Anselmo assinala, também, a "contrapartida" que os habitantes deveriam prestar para com o regime: "Nos bastidores, sabia-se que comparecer à praça em dia de discurso [de Fidel Castro] contava pontos na escola ou nos locais de trabalho. Recusar-se a comparecer era visto como ofensa, passível de futuros constrangimentos".

O ex-marinheiro usa e abusa das ironias à medida que o depoimento se aproxima do ponto crucial. E, aos poucos, ele mostra como perdeu suas esperanças na revolução que "libertaria o Brasil do imperialismo norte-americano e do capitalismo". Em um desses momentos, ele aponta qual foi o momento em que teve a noção do equívoco no qual estava metido: "Em Cuba, conheci e tive a oportunidade de conversar com chineses, coreanos, vietnamitas, africanos, europeus, latino-americanos, e percebi que o discurso de cada um era carregado por uma crença comum: construir um mundo melhor, mudando a maneira de pensar e agir de bilhões de pessoas (...) Um mundo de ovelhas clonadas à imagem do todo-poderoso presidente do partido único". Embora nem o autor nem Anselmo revelem, essa passagem talvez seja o ponto-chave para que se entenda o motivo da "conversão" do rebelde de 1964 ao sistema que havia antes combatido.

Apesar de polêmico, o depoimento de José Anselmo dos Santos não possui excessos de nenhum dos lados, e essa sobriedade se deve ao fato de Percival de Souza não ter se envolvido demais com a história, como se fosse um acerto de contas com o passado. Sua única preocupação foi ser o mais fiel possível ao relato de seu personagem, cruzando os detalhes com outras informações, além de contextualizar e pontuar os trechos mais interessantes. Um bom exemplo de jornalismo.

Para ir além





Fabio Silvestre Cardoso
São Paulo, 20/7/2004

 

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