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Sexta-feira, 23/7/2004
De uma volta ao Brasil
Eduardo Carvalho

É muito difícil compreender a realidade brasileira apenas lendo sobre ela. Os clássicos são esclarecedores, mas pontuais - tratam, normalmente, de regiões e momentos específicos. Não vou nem comentar os filmes, que talvez pudessem, mais do que os livros, ampliar a compreensão brasileira sobre o Brasil: mas se limitam a replicar estereótipos importados, em vez de negá-los. A experiência literária é insubstituível, mas ainda assim: existem poucos livros sobre o Brasil. Os livros não comparam a diferença de temperamento do mineiro e do paraibano; não descrevem as formas dos morros curtos mas impressionantes, isolados no Tocantins; não transmitem o perigo da viagem noturna no interior do Maranhão. E uma viagem longa pelo país, no trajeto e na duração, pode ser uma experiência educacional - e, por isso, é altamente recomendável a quem, aos 18 anos, pretende aprender mais sobre o país em que nasceu.

É disso que eu estava convencido, quando, em 2000, decidi praticamente atravessar o país de carro. Tracei, com um amigo, um roteiro de mais de 10.000 km, de São Paulo até São Luis do Maranhão, em linha reta pelo interior do país - para depois voltarmos, com mais calma, contornando o litoral. Escolhemos as cidades em que dormiríamos - de Gurupi, no Tocantins, a Santo Amaro da Purificação, na Bahia. Estimamos um mês e meio de viagem, saindo de São Paulo no começo de janeiro e chegando, se chegássemos, na semana antes do carnaval. Chegamos - mas atrasados, claro: a semana do carnaval foi dividida entre Recife e Salvador, trecho que completamos, improvisadamente, numa segunda-feira, enquanto o Brasil inteiro sambava. Ajustamos o roteiro, durante a viagem, assim, espontaneamente, mas sem escaparmos do esqueleto original: e, durante dois meses e meio, rodamos mais de 12.000 km pelo Brasil.

Nunca escrevi sobre essa viagem. Nunca pensei que fosse escrever. Quer dizer, pensei: mas desisti de um diário na primeira semana, depois de reescrever quatro vezes o primeiro parágrafo. É impossível escrever com Os Sertões ao lado. A forma de Euclides - cansativa mas forte - contamina, e involuntariamente acabei copiando seu estilo. Ficou ridículo. Decidi dispensar o diário, então, na segunda semana, quando me hospedava numa fazenda entre os rios Araguaia e Tocantins. Acho um certo desperdício, hoje, não ter registrado nada, mas talvez teria menos o que registrar, se ocupasse muito tempo escrevendo. Aproveitei o máximo que pude.

De São Paulo fomos, em primeiro lugar, para Barretos, onde, na fazenda, pegamos o carro oficial, que nos levou embora. Levamos um galão de gasolina e dois steps, porque a distância entre alguns postos, no sertão, é alcançável apenas a diesel. Alguém nos aconselhou a levar também um revólver. Não levamos. Amarramos um pneu no teto do carro. Enchemos o porta-malas com todos as roupas e equipamentos: sleeping bag, lanterna, faca, rede, comida, etc. Fomos com o carro lotado. Muita coisa foi inútil, mas precisávamos ter levado - como o galão de gasolina, que caiu do carro em Recife, pelo porta-malas mal fechado, e espalhou combustível por toda a rua. O revólver, no entanto, talvez fosse mesmo uma boa idéia.

No interior de estados como Goiás, Tocantins, Maranhão, muita gente ainda anda visivelmente armada. Às vezes é apenas para caça. Mas outras vezes não é: algumas cidadezinhas estão cheias de matadores profissionais, e os bares em que se encontram são conhecidos e evitados pelos locais. Um turista não pretende cair em ambiente assim. Nós tomamos cuidado. Também nunca viajamos de noite, apesar de duas exceções: a primeira vez no Maranhão, quando, desorientados durante uma tempestade, erramos o caminho de Imperatriz a São Luiz - e quase chegamos em Teresina, percorrendo 400 km a mais; na segunda vez, calculamos mal o tempo entre a praia da Pipa, no Rio Grande do Norte, e Caruaru, em Pernambuco - e quando, depois de Recife, consultamos o mapa para descobrir onde estávamos, me assustei com o aviso amarelo: "Evite viajar à noite. Alto índice de assaltos". O começo da BR-101, em Touros, no Rio Grande do Norte, também não é hospitaleiro, apesar de lindo: um faroleiro nos contou que várias vezes haviam tentado fechar seu carro naquela estrada. E isso acontece em muitos outros lugares: uma gangue estava assaltando motoristas perto de Araguaina, no Tocantins; uma tribo de índios, além de cultivar maconha, interrompia e assaltava os motoristas que iam a Carolina, no Maranhão; éramos também, com freqüência, alertados sobre a corrupção dos guardas rodoviários.

Voltando a Barretos, de onde saímos: fomos, em seguida, para Brasília, atravessando Minas Gerais. Minas é - fora São Paulo, e junto com Paraná e Pernambuco - um dos meus três estados favoritos no Brasil. Minas é uma estado levemente triste e muito educado. Mas não nos hospedamos lá. Entramos em Goiás, e rapidamente chegamos à periferia de Brasília - que começa longe do centro, nas cidades satélites, sujas e desorganizadas. A cidade foi mal planejada - não se consegue andar a pé - e desenhada para empacar no tempo. A arquitetura de Brasília evoca, involuntariamente, uma possível característica brasileira: nossa obsessão em estarmos por dentro de modismos estrangeiros e, ao mesmo tempo, nossa incapacidade para acompanhá-los. Brasília ficou sem identidade - sua juventude imita de modo patético o sotaque carioca - e perdida geograficamente, longe de onde as coisas acontecem.

Nada de especial acontecia em Gurupi, no Tocantins, nosso próximo destino. Saímos sempre, nessa viagem, de madrugada. Quando o sol começava a raiar, numa estrada esburacada em Goiás, e percebíamos que tomamos café antes dos caminhoneiros, a impressão é de que não estávamos ali para brincadeira. Precisávamos ir em frente - e ir longe. Precisávamos também trabalhar. Acelerávamos de manhã e na hora do almoço, quando a estrada é vazia. Aos 18, 19 anos, tínhamos já, relativamente, experiência com estradas, caminhões e buracos - e aos poucos, durante a viagem, aprendemos mais. Descobrimos que os obstáculos em Goiás não funcionam, porque foram derretidos pelo calor do sol; que as meninas de 13, 14 anos, encostadas na beira da rodovia, não são, infelizmente, ingênuas como parecem; que você precisa trocar um pneu não apenas quando ele fura - mas também quando, por causa dos buracos, sua calota está deformada; descobrimos inclusive que, em alguns trechos da Belém-Brasília, teríamos ido mais rápido se estivéssemos viajando no lombo de uma mula.

Existe, em Gurupi, um famoso centro de estudo veterinário, dedicado ao desenvolvimento genético do gado nelore. A cidade é cheia de estudantes homens, que se revezam entre o bar e o laboratório. Chegamos à tarde, e não fomos longe do hotel: estávamos apenas de passagem, porque, no dia seguinte, mais de 1.000 km nos aguardavam - e suspeitávamos que seriam piores do que os 2.000 anteriores. E foram: e tudo, mesmo assim, deu certo, para chegarmos em Araguatins, na fazenda, na tarde do dia seguinte. No Tocantins, alguns trechos da estrada asfaltada, já considerada Transamazônica, estava deserto. Chegamos, antes de Araguatins, em Buriti, num domingo, quando a cidade se reunia na praça principal para assistir a uma pelada. O jogo parou. Passamos pela praça como se, de repente, um disco voador desse um rasante em Buriti - porque todo mundo, impressionado, ficou olhando dois estudantes normais, em um carro normal, a uma velocidade normal. Estranhamente, nada parecia normal para eles.

O Bico do Papagaio foi, há duas, três décadas, palco de disputas e guerrilhas. O lugar ficou famoso, em São Paulo, pela violência, mas hoje é uma região potencialmente rica e estratégica. O preço da terra está subindo rapidamente, enquanto a fronteira agrícola brasileira - se o Ibama deixar - se expande com velocidade. Dormimos numa fazenda limpa e linda, entre o Araguaia e um acampamento de sem-terras. A maioria dos que recebeu a terra já se foi, e os que ficaram passam o dia deitados, porque recebem dinheiro e alimento do governo. Há, na frente de cada barraca, um Opala ou um Corcel, e às vezes uma bandeira vermelha velha e rasgada. A pequena população de Buriti - que se sustenta com o próprio suor - não se simpatiza com essa comunidade. Eles sabem que é possível viver ali trabalhando honestamente. Os sem-terra são hoje inofensivos, apesar de estarem armados, mas não se misturam com a população local. Não são apenas os fazendeiros, portanto, que se incomodam com esse método de ganhar a vida - mas pouca gente percebe isso.

Passamos algumas vezes pelo acampamento. Duas, para ser preciso: uma para ir e outra para voltar de uma ilha no Rio Araguaia, onde dormimos uma noite. Passamos o dia passeando de barco e pescando piranhas. Visitamos alguns casebres de pau-a-pique no Pará, do outro lado do rio, onde moram catadores de castanhas. Comemos churrasco, tomamos pinga, nos lavamos no rio. Dormimos embaixo de uma tempestade, na rede, cobertos por um barracão de palha - que por pouco não foi levado pelo vento. No dia seguinte, visitamos um monumento oriental, semelhante ao Taj Mahal, coberto por ouro e recheado de preciosidades, isolado no sertão do Tocantins, mas em certos assunto é melhor não tocar.

De Araguatins, seguimos para Imperatriz, no Maranhão, a caminho de São Luis, onde praticamente tudo tem um único sobrenome: Sarney. É o que primeiro chama a atenção quando se chega na cidade. No centro cultural de São Luis, bonito e reformado, o mausoléu de José Sarney já está preparado. Nas livrarias da cidade, seus livros estão sempre em destaque. Outra recordação de São Luis - que me arrependo de não ter comprado - é o busto dourado do homem. No mais, São Luis, uma capital, parece uma vila: com suas ruas estreitas e sua população aparentemente provinciana. Não reparei no português falado, famoso pela clareza e correção: o que vi é que a cidade está - estava - infestada por uma moda reggae, pela proximidade com o Caribe. E um amigo experimentou o "arroz de puxá", a comida mais tradicional da região, no restaurante mais recomendado da cidade: e passou a semana seguinte trancado no quarto e no banheiro, descarregando o arroz e a energia com que pretendia continuar viajando.

O litoral do Maranhão é extenso, deserto e desconhecido. Os Lençóis são um destino comum, mas os turistas se concentram em Barreirinhas, a cidade de apoio aos visitantes, e deixam o resto quase vazio. Nós, de carro, fizemos um roteiro alternativo: de São Luis fomos antes até Tutóia, na divisa com a Paraíba, onde deixamos o carro, e de lá voltamos de jipe e de barco pelo litoral - até, aí sim, chegarmos em Barreirinhas. Fomos, de Tutóia, até Mandacaru, cortando rios na caçamba de um Toyota, chacoalhando durante 4 horas. Mandacaru é uma vila de 4 mil habitantes, atrás de um mangue e na beira do Rio Preguiça. Não há hotel nem pousada em Mandacaru. Dormimos numa barraca na beira da praia, de um senhor que havia sido, nas últimas décadas, todos os anos campeão regional de caça ao caranguejo. Araquém de Alcântara - que fotografou todos os cantos do Brasil - tem uma foto premiada desse nosso anfitrião, sorrindo, subindo da lama com um caranguejo na mão. Ele nos mostrou o livro - maravilhoso, aliás - autografado pelo fotógrafo, que guarda junto com National Geographic, Vogue, etc., com reportagens sobre a região.

Tomamos banho na barraca e fomos visitar a praça de Mandacaru, onde assisti a uma das cenas que mais me marcaram na vida. Quase nenhuma casa tem televisão em Mandacaru. Então, durante a novela, a cidade se encontra na praça para assistir a televisão municipal. Sentados na areia, todos, em silêncio, acompanhavam histórias de um mundo que - não fosse pela televisão - eles dificilmente imaginariam que existe. Os apartamentos da novela, os escritórios, carros, restaurantes, eram tão diferentes da vida em Mandacaru, que não parecia realidade para eles: era como se assistissem, encantados, a histórias fabulosas de um planeta inexistente. Enquanto isso, ao lado da televisão, uma igreja protestante qualquer armou o seu altar: e, no mesmo horário da novela, começava sua pregação barulhenta e alucinada. A novela e a missa concorriam diretamente, em um lugar isolado e pequeno, reunindo quase toda população local. A igreja católica, ao lado, fechada. E, no fundo da praça, o farol de Mandacaru continuava girando, ignorado, apontando para todos os lados - seu facho de luz, até chegar no mar, atravessava nuvens, em um céu estrelado e escuro. A cena, para mim, resumia o Brasil.

Saímos de Mandacaru um dia depois, em direção a Barreirinhas. Às 18 hrs., aproximadamente, pegamos carona em um barco de pescador, preparado para passar uma semana em alto mar - só que um dos pescadores, no primeiro dia, ficou doente, e o barco precisou levá-lo de volta a Barreirinhas, onde havia assistência médica. Fomos deitados na cobertura do barco, subindo o Rio Preguiça - conversando e olhando para o céu. O litoral do Maranhão, à noite, é completamente escuro. Não há cidades próximas nem poluição. Conseguíamos enxergar milhares de estrelas pequenas e dezenas de estrelas cadentes. E, de repente, uma estrela apareceu piscando. Nós todos - nós três, em cima do barco - vimos a mesma cena, assustados: o que imaginávamos uma estrela se mexeu, e começou a piscar em outros lugares. Não era vaga-lume - vimos alguns, e sabíamos diferenciar: não era vaga-lume, insisto. Não era avião. Não era estrela candente. Não era satélite. Não sabíamos o que era. Até hoje, eu não sei. Mas desconfio. E não posso - não vou - falar. Espero continuar sendo confiável.

Em Barreirinhas, aproveitamos mais os Lençóis Maranhenses, e depois, de ônibus, voltamos para Tutótia, para pegar o carro e seguir em frente - não estávamos ainda na metade do trajeto, em um mês de viagem. Continuamos nossos planos: fomos para o Ceará, cruzando o Norte do Piauí, para visitarmos o resto do litoral brasileiro. Passamos por todos os estados do nordeste. Pingamos em pontos simbólicos: o início da Transamazônica, o ponto mais próximo da África, o mais ocidental do Brasil, o em que o litoral começa a descer, etc. Visitamos praias maravilhosas. São os capítulos que descreverei na próxima coluna.

Naquele momento, ficou em nós, estudantes, a sensação de que tínhamos passado pelo pior, digamos assim: os momentos mais difíceis e mais arriscados. Tínhamos acabado de aprender a dirigir, e encaramos as estradas mais perigosas do Brasil - do mundo, por extensão. Onde tudo - acidentes, assaltos, etc. - podia acontecer, e acontecia, ao nosso lado. Estávamos sozinhos. No litoral, pensávamos, havia gente, pelo menos, e havia turistas. Camionetes gigantes carregavam equipes de reportagem pelas praias; encontrávamos, em cada cidade, os mesmos cinegrafistas, filmando a beleza - supostamente - escondida do Brasil; outros amigos e muitos estrangeiros também tinham essa idéia: de começar viajando, de carro ou de ônibus, de Fortaleza, mais ou menos, e descer conhecendo as praias. Seguimos então, daí em diante, o fluxo de muita gente. De repente, não estávamos mais sozinhos.

Eduardo Carvalho
São Paulo, 23/7/2004

 

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