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Terça-feira, 27/7/2004
Deitado eternamente em divã esplêndido – Parte 2
Luis Eduardo Matta

Dando continuidade ao artigo publicado aqui no último dia 13 de julho, o texto de hoje procurará enfocar, em linhas gerais e na medida do possível, as repercussões que a busca do Brasil por uma identidade própria tiveram na forma como nós produzimos e pensamos a cultura.

Como eu tive a oportunidade de frisar na análise anterior, o Brasil vive, desde o momento em que começou a se entender como nação, um conflito existencial; é como um paciente sem uma noção precisa de si mesmo e que, como numa síndrome maníaco-depressiva, alterna momentos de acentuado desprezo por seus defeitos - ou por aquilo que considera como defeitos - com outros de apego e exaltação desmesurados a características que lhe são peculiares. Todos sabemos que a cultura é um componente fundamental para o diagnóstico de um povo; é através dela que, muitas vezes, o país se desnuda, expondo-se por inteiro, revelando a sua realidade mais crua, mais telúrica, mais verdadeira, com todas as suas contradições e cicatrizes; tudo a partir do ponto de vista de quem habita a terra, conhece as suas virtudes e agruras, convive com os seus conterrâneos e naturalmente encontra nessa experiência os alicerces da própria personalidade.

Pela sua vastidão territorial, pela riqueza das suas inúmeras manifestações folclóricas, pelas peculiaridades próprias de cada região, pelo enorme caldeirão de culturas no qual se converteu no decorrer da sua História, o Brasil, inegavelmente, sempre deslumbrou os artistas e intelectuais, forçando-os a dedicar atenção à exuberância das nossas paisagens e às peculiaridades dos nossos costumes. Afinal, o país é, de fato, escandalosamente fascinante. Por outro lado, a atração despertada aqui pelo glamour e a riqueza da cultura européia, com sua tradição de gloriosos compositores, escritores, arquitetos, pintores e escultores e sua História rica e efervescente da qual somos, em parte, herdeiros, gerou uma espécie de paradigma do que era belo artisticamente, relegando todo o resto a um plano inferior. O Brasil, como nação nova e promissora, carente de uma identidade, com uma forte influência colonial européia e uma realidade bem distinta - mestiça e multifacetada -, sentiu a necessidade de criar seu próprio imaginário cultural, inspirado nos sons e cheiros da terra e do povo e, de alguma forma, atento a certos requisitos da arte já estabelecida. Um exemplo disso é o Romantismo Brasileiro, movimento cultural que floresceu no século XIX e que teve como expoentes José de Alencar, Gonçalves Dias, Carlos Gomes e Victor Meirelles.

A idéia, em si, é louvável. A arte é um canal legítimo de expressão de um povo, dos seus desejos, das suas angústias, da sua visão sobre si e o lugar onde vive. O esforço de se construir uma Cultura Brasileira (assim mesmo, com maiúsculas) deve sempre ser enaltecido como uma empreitada idealista e positiva que reflete o apego e a devoção de mentes notáveis à sua pátria. O problema é quando esta devoção atinge níveis extremados, gerando uma radicalização desse pensamento. É neste ponto que eu quero chegar.

Há anos acompanho a movimentação nos nossos círculos culturais e intelectuais, seus debates, manifestos e projetos e uma das coisas que sempre me chamaram a atenção foi a propagação de uma tal noção de brasilidade, termo cujo significado, confesso, até hoje não consegui compreender totalmente (se alguma boa alma leitora deste site souber e tiver a generosidade de explicar a este humilde e xucro colunista, eu serei grato pelas próximas cinco encarnações). Perdi a conta das vezes que li ou ouvi críticos de respeito desqualificarem espetáculos, filmes, músicas, livros ou trabalhos de artistas plásticos sob a duvidosa alegação de que não eram "brasileiros". Acredito que, em alguns casos, essa tomada de posição seja uma reação à invasão descontrolada da produção cultural estrangeira - especialmente a norte-americana - e uma conseqüente preocupação em preservar o que é feito aqui. É um movimento de resistência similar ao que existe em prol dos idiomas e dialetos ameaçados de extinção e contra a crescente supremacia do inglês, o que pode acarretar o desaparecimento de culturas antiqüíssimas, que têm no idioma o principal suporte de sobrevivência, já que costumes e tradições de diversas civilizações foram passados de geração para geração oralmente, sem nunca terem ganhado registros escritos.

Existe, contudo, uma linha muito tênue, similar à que divide a genialidade da loucura, que separa a intenção totalmente válida de se cultivar as raízes culturais de um povo da xenofobia alucinada contra tudo o que vem de fora, xenofobia essa conjugada a uma noção deturpada do que pode ou não compor a cultura de um país, no caso o Brasil. É como se, qualquer influência estrangeira fosse vista como uma intromissão alienígena visando a destruir a verdadeira essência da alma nacional, algo tão absurdo como achar que a língua portuguesa, por conta da assimilação de termos em inglês, fosse desaparecer. Se o português tem um inimigo, este se encontra nas nossas salas de aula, na forma como ele é (mal) ensinado, formando a cada ano gerações de alunos que desconhecem as normas mais elementares de se falar e escrever no idioma e que, por causa disso, acabam facilmente se tornando agentes da deterioração da língua falada.

O engessamento da cultura brasileira, felizmente, nunca aconteceu, graças, sobretudo, ao seu dinamismo e ao seu caráter insubordinado. Mas é o sonho de muitos dos nossos intelectuais, adeptos de um purismo absolutamente incompatível com o estreitamento do diálogo entre os povos, característico do mundo de hoje. A pergunta que eu faço é a seguinte: por que cargas d'água a cultura brasileira, ao se deixar afetar, ainda que de leve, por linguagens oriundas de escolas estrangeiras, perderia a sua legitimidade? Será tão difícil para nós aceitar sem rancor o diálogo sadio com manifestações artísticas que não são originalmente nossas e que, apesar disso, podem enriquecer a nossa cultura em vez de aniquilá-la?

É lógico que não se deve defender a rendição completa aos modelos importados, pois isso seria uma estupidez descomunal, além de uma enorme perda de tempo, já que a cultura brasileira, em todas os seus segmentos, é sólida o bastante para afastar esse risco. Trata-se, portanto, de uma possibilidade tão remota e absurda que chega a ser risível. Qualquer pessoa minimamente consciente sabe disso. O temor dos apóstolos da tal "brasilidade" de ver o Brasil circunscrito, no plano cultural, à condição estéril de mero receptor passivo da produção do mundo dito "civilizado" esconde, na verdade, uma enorme insegurança em relação ao que é criado aqui, como se o complexo de inferioridade que historicamente atormenta as nossas elites estivesse igualmente presente no plano cultural, que é peça importante da construção da identidade de um país. Logo, o que está em jogo é a consolidação dessa identidade acima de tudo.

Existe também a crença, até certo ponto pertinente, de que a cultura deve funcionar como um veículo de denúncia social e política e de resgate da História. Artistas e intelectuais seriam pessoas comprometidas com um projeto maior de salvação do Brasil e não poderiam desertar dessa missão, sob pena de serem apontados como oportunistas e alienados. Um livro ou filme que exclua tais elementos costuma ser mal-visto e, ainda que possua reconhecidas qualidades, fatalmente será criticado como uma obra menor, em desacordo com a essência da tradição artística brasileira e acintosamente descomprometido com as agruras do país. Seus autores serão acusados de crime de lesa-pátria, por terem capitulado à banalização e ao desejo ganancioso de ganhar dinheiro e fama e se tornarão alvos de maledicências e desconfiança, isso se não se tornarem vítimas de um desprezo proposital e calculado. É uma racionalização radical do exercício da arte, incompatível, a meu ver, com a sua natureza lúdica e rebelde. Induzi-la a se enquadrar em esquemas rígidos, se esta não for a intenção genuína do artista, é o mesmo que anulá-la e, aí sim, sua identidade sairá seriamente debilitada.

Por mais incrível que possa parecer, o Brasil ainda não conseguiu encontrar o seu caminho definitivo no campo cultural, um caminho no qual se sinta suficientemente seguro e autoconfiante para franquear aos artistas, um grau irrestrito de liberdade criativa, sem o risco de serem acusados de vendidos ou antipatriotas. Os brasileiros precisam compreender que possuem uma das culturas mais ricas e magníficas do mundo e que esse patrulhamento inconseqüente e quase paranóico não tem maior sentido. Ainda porque, para as novas gerações de artistas, desde cedo sintonizadas com a cultura internacional, é cada vez mais difícil isolar as referências não-brasileiras na hora de dar asas à imaginação. Do mesmo modo, não devemos cobrar da arte a função de reverter o atoleiro sócio-econômico no qual estamos metidos há décadas. Ela pode, é claro, prestar esse serviço voluntariamente, mas não nos esqueçamos de que o grande responsável pelas nossas mazelas é o Estado brasileiro, historicamente inoperante, corrupto, letárgico e burocrático, cujo desempenho africano continua a ser sustentado por impostos escandinavos. Ele, sim, precisa ser cobrado de forma dura, firme e a arte pode, nesse caso, auxiliar na cobrança. Mas caso opte por não fazê-lo, ela merece e deve ser perdoada, pois é um direito que lhe assiste.

*Aguardem, dentro de duas semanas, no terceiro e último artigo da série, uma breve análise sobre alguns aspectos curiosos do comportamento brasileiro.

Luis Eduardo Matta
Rio de Janeiro, 27/7/2004

 

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