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Segunda-feira, 2/8/2004 Festa de família à brasileira Lucas Rodrigues Pires O filme marca a volta de Daniel Filho ao cinema à frente das câmeras. Sua trajetória comandando a Globo Filmes foi a mais bem-sucedida possível e sua empreitada pela direção - em 2001, com A Partilha - foi um sucesso comercial (mas não de crítica). Para o final do ano chega outro longa dirigido por ele, com Antônio Fagundes e Rodrigo Santoro no elenco. Neste filme modesto que é Querido Estranho, uma adaptação da peça teatral Intensa Magia, de Maria Adelaide Amaral (a mesma que nos presenteou com as melhores minisséries da Rede Globo dos últimos anos - Os Maias e A Casa das Sete Mulheres), Daniel Filho é Alberto, um pai de família sessentão que vai receber os filhos para o almoço no dia de seu 64º aniversário. Ele mora com a esposa, Roma, e a filha caçula, solteira, já na casa dos 30. O dia amanhece com o casal acordando e se preparando para a festa. Em poucos minutos, as personalidades de cada um vão sendo delineadas e já se pressente o que virá. Um certo desgosto toma conta de Alberto, que vai aos poucos destilando suas amarguras. O desenrolar da trama recai na comédia dramática ("seria cômico se não fosse trágico"), com o desabafo de Alberto e um acerto de contas para com todos os integrantes daquela família - desde a mulher, fiel e omissa, até os filhos que se foram de casa. O resultado é o mais familiar possível (trocadilho impossível de escapar), com a identificação do espectador com alguns dos personagens. Querido Estranho, assim, se mostra como um Festa de Família (filme do premiado movimento Dogma 95, que acabou logo depois que começou), só que sem ousadia em termos estéticos e de linguagem cinematográfica. No fundo, o que se vê em cena é mais um capítulo do confronto de gerações, de brigas entre pais e filhos (quase sempre entre as figuras masculinas), de visões de mundo, tal qual vimos recentemente no canadense As Invasões Bárbaras e no argentino Lugares Comuns. Eis um mundo que se esvai com tamanha facilidade e é substituído por outro que, politicamente (caso dos dois filmes estrangeiros citados) e culturalmente (caso de Querido Estranho), é mais pobre e menos radioso. O mundo utópico, das idéias, da cultura efervescente dos anos 60, cedeu lugar ao pragmatismo dos anos 90, do pós-Muro de Berlim, do liberalismo globalizante e generalizante. E essa transição é bem evidenciada na família pela relação pai/filho. Mas não há, em Querido Estranho, nenhuma espécie de enaltecimento da figura do pai. Ao mesmo tempo em que ele é o pai erudito, senhor de uma cultura digna de nota, é também similar ao pai autoritário e opressor da famosa Carta ao Pai de Franz Kafka. Ao final, a amargura contra a família por parte de Alberto nada mais é que uma reação à sua derrota perante a vida. Após o clímax há uma espécie de prólogo, em que vemos o que de fato aconteceu e sentimos o verdadeiro espírito daquele dia chuvoso (e estranho) de aniversário. A vitória de Alberto, sua superioridade e sua absoluta independência de todos é revertida pela simplicidade da mulher, por sua postura diante da vida, ou seja, saber vivê-la conformada com o que lhe foi destinado. E aí temos a fala, proferida por Alberto, que fecha o filme e que é sem dúvida a mais forte, triste e que, de certa forma, admite sua derrota diante da vida. Ele diz à esposa: "Sabe o que eu mais admiro em você, Roma? É a sua incrível capacidade de ser infeliz". Ser feliz é fácil, difícil é conformar-se com a infelicidade e seguir vivendo. Lucas Rodrigues Pires |
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