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Quarta-feira, 11/8/2004
Para gostar de ler
Ana Elisa Ribeiro

As pessoas que gostam de ler têm sempre uma história para contar sobre os livros da infância, os de cabeceira e os discos de vinil colorido de quando eram guris. A bagagem de leitor (ou background) vem de tempos remotos, quando o texto ainda chegava por via auditiva e a criança ainda não havia sido alfabetizada (mas, conforme teorias mais recentes, já estava sendo letrada).

As pessoas que gostam de escrever também têm histórias sobre os cadernos brochura que ganhavam de mamãe, os formulários contínuos de computadores velhos e os lápis e canetas que se perdiam pela casa. Também podem contar histórias de diários escritos na adolescência e de poemas escondidos em fundos de gavetas secretas. Os contos de terror e as novelinhas de amor melado também podem ser o embrião da vontade de escrever com seriedade, algo que pode vir a acontecer mais tarde.

Na gênese dessas histórias (de vida e afetivas, no entanto, mais tarde, profissionais) é comum, muito comum, encontrar a figura do professor, o mestre do colégio ou da escola primária que ajudou a formar o gosto ou o desgosto pela leitura, pela escrita, pela tarefa alfabética. O ator dessa cena letrada que ensinou a ler, a escrever e a pensar, em alguns casos.

Seja pelo amor ou pelo ódio, esse professor aparece nas narrativas dos profissionais de jornalismo, dos escritores e dos docentes de todos os níveis de ensino. Também aparece nas narrativas de profissionais de outras áreas que não empregam leitura e escrita como ferramentas, mas que são pessoas que se formaram no gosto pela língua escrita.

No Brasil, o ensino fundamental compreende oito anos de escolaridade, o que seria teoricamente obrigatório para todos os cidadãos. Essa conta desconsidera aqueles dois ou três anos de pré-escola, que, em geral, são feitos no que se chama de jardim de infância. Os oito anos fundamentais são direito de todos e são oferecidos em redes públicas municipais, estaduais e federais, ao menos por enquanto. Após essas séries (ou quatro ciclos, conforme a nomenclatura mais atual), o adolescente deveria saber ler, escrever, fazer contas de todos os tipos e estar preparado para compreender fatos históricos e geográficos. Também deveria redigir de maneira razoável e ler com certo senso crítico. Além dessas habilidades cognitivas e intelectuais, esse cidadão deveria ter freqüentado aulas para desenvolvimento de habilidades motoras e atividades físicas. Em alguns casos, as escolas oferecem também aulas de artes plásticas, música ou teatro.

Para os objetivos deste texto, vou desconsiderar os anos de pré-escola (que nem todas as crianças têm oportunidade de conhecer) e os anos de ensino médio e faculdade (raridade entre os brasileiros). Pensando apenas no ensino fundamental, é necessário fazer uma conta interessante, qual seja, o número de professores com os quais um aluno se depara na vida. Se todos cursamos os oito anos e temos, no mínimo, as disciplinas do currículo obrigatório (Língua Portuguesa, Matemática, História, Geografia, Ciências, Educação Física e Língua Estrangeira), em média, conhecemos 56 professores durante essa fase, e isso é apenas a média. Em alguns casos os professores se repetem ao longo das séries, em outros, a rotatividade na disciplina faz com que muitos professores dêem a mesma matéria ao longo do ano).

Dos 56 professores que atravessam nossa história, apenas dois ou três são lembrados. Por quê? Em muitos casos, a memória grava os melhores representantes da disciplina do afeto. O pequeno cidadão pode, mais tarde, optar por seguir certa profissão a partir influência do professor adorado, a disciplina ministrada com carinho e interesse inesquecíveis. Em outros tantos casos, o professor é lembrado pelo desafeto, pelo arrepio de raiva por ter sido tão ruim, tão autoritário, tão picareta, tão inseguro.

Em minha própria história, são memoráveis pela ruindade certos mestres de Inglês, que mal podiam pronunciar palavras e frases inteligentes (tais como the book is on the table), os mestres de História que precisavam espiar as páginas do livro didático durante toda a aula (porque pareciam não saber o que dizer sobre tal ou qual assunto de sua disciplina) e mestres de Português incapazes de escrever uma linha sequer, mas que viviam dando sermões sobre os textos dos alunos.

No lugar da boa memória e da influência positiva, sobraram mestres que me fizeram acreditar que gosto de ler e escrever apesar da escola. Não porque seja ela pública ou privada (fique isso claro!), mas porque eram absolutamente inverossímeis em sua relação com o assunto de que tentavam tratar em sala de aula.

Gozei meu direito ao ensino fundamental, cursei o ensino médio e tive o privilégio de me graduar e pós-graduar neste país e, se me ativer à memória de todo esse percurso, terei a surpresa de conseguir me lembrar dos professores de Língua Portuguesa e Literatura com certo esforço e com certo rancor. Escolhi uma profissão em que a língua escrita é ferramenta necessária e a boa escrita é necessidade básica. E o mestre de Literatura me vem à cabeça como um barbudo que copiava o livro didático e só falava de poetas mortos. As mestras de Língua Portuguesa solfejavam regras gramaticais e não me davam a menor chance de escrever sobre assunto interessante. Talvez eu conte dez ou doze redações sobre Minhas Férias e uns tantos inúteis acrósticos sobre o Carnaval. Para quê? É a pergunta que me faço depois de tantos anos na escola, depois de tanto tempo tentando me letrar.

Atualmente, o movimento do ensino fundamental é fazer com que o aluno passe da fase de aprender a ler para a fase seguinte: ler para aprender. E não apenas como um processo passivo, de aceitação do que se lê, mas como algo que se faça de forma pensante, crítica e fundamentada. Um aluno começa lendo sílabas ou lendo palavras (conforme o método de alfabetização), mas daí a frases e a textos há muito caminho que trilhar. E nessa trilha estão envolvidos muitos fatores, de todas as ordens, inclusive da afetiva.

Ler para aprender deveria levar ao ler para questionar, para pensar, para refletir e para raciocinar em rede, ou seja, não apenas para estocar informação numa memória estanque, mas para aumentar uma rede interconectada de conhecimentos, ativar a história, a memória, as relações entre informações, a multimídia, as sensações, as lembranças e a intertextualidade. Ler para triar, para repensar, para articular. Em seguida, triar para ler e tornar-se alguém que seleciona, amplia ou reduz, conforme a necessidade e a vontade.

O alfabetizado foi um conceito importante, no entanto, tinha um antônimo perfeito (analfabeto) que produzia preconceito, de um lado, e era pouco eficiente, de outro, uma vez que nem todo aluno alfabetizado se tornava um cidadão capaz de triar, criticar, repensar, responder e reagir. Ler sílabas e assinar o nome não passa de pichação. Com o tempo, notou-se que, além de alfabetizada, a pessoa deveria ser letrada, ou seja, deveria saber manusear, manipular e reagir (lendo e escrevendo) a todo gênero de texto. Ler bilhete, notícia, anúncio publicitário e classificado faz parte das manobras que alguém precisa dominar, além de fazer parte das práticas sociais (mais urbanas do que rurais, admita-se).

O papel da escola e do professor (por extensão) seria, independentemente da disciplina que ministrasse, orientar seu aluno para que se torne um leitor, intérprete de todo gênero de texto, considerando-se todo tipo de suporte, meio de publicação, modalidade.

O cidadão deve dominar, com versatilidade, a forma da conversa ao telefone e o discurso falso do político, assim como, no domínio da escrita, a produção do cartaz de venda do carro e o ofício enviado a instância superior. Empregar os pronomes de tratamento não como regras inúteis e descontextualizadas, mas como parte de um modus operandi que pode vir a fazer parte de um dia em nossa vida. Eis a pessoa alfabetizada e letrada, e não apenas o analfabeto funcional que não aparece nas mascaradas estatísticas sobre escolaridade e fracasso.

No percurso escolar fundamental, deveria-se formar o cidadão minimamente capaz de ler o Estatuto do Idoso ou o Estatuto da Criança e do Adolescente. Caso contrário, parece inútil formar crianças que não sabem o que é uma sigla.

E enquanto nós aqui discutimos nossas vontades relativas ao ensino básico, a França discute o que Emilia Ferreiro chama de computer literacy, ou seja, a relação de letramento dos cidadãos franceses especificamente com relação ao computador e à Internet, o acesso das pessoas aos gêneros de texto que emergiram depois da invenção de certos suportes eletrônicos e o acesso de todos às possibilidades (textuais) oferecidas pela máquina e pela Rede. E nós ainda chegaremos lá, quando nossa discussão ultrapassar a relação das pessoas com a leitura dos rótulos de alimentos.

e pra quem acha que esta coluna virou uma espécie de álbum do bebê...

aqui vai mais uma foto que flagra a recém-parida dando asas à imaginação da cria recém-nascida. a cassandra wilson canta uma belíssima canção assim: look at your son... he's a golden one... e eu fico pensando se ele será mesmo um cara legal, como era o menino maluquinho.

ah, quando meu relógio funcionava conforme meu ritmo...
há semanas sonho que estou afogada entre fraldas e que um tio me dá sermões ecológicos por causa das fraldas descartáveis. ainda não estabelecemos todas as rotinas desta casa súbita. eduardo impera solo. os avós babam explícito. os tios, menos. os pais apanham. as madrugadas são fragmentadas. a cada mamada, umas estrelas e um intervalo para ninar. nem mesmo escolhemos as músicas. já ninei com cordel do fogo encantado e deu certo. os óim do meu amô. os dias parecem insuficientes. haja livro e haja silêncio para tanto choro. mas a casa tem o tamanho da necessidade. sessenta metros quadrados pra este pequeno príncipe.

Conto
encontrei marangón duas ou três vezes. naquela época, eu ainda nem pensava em ser mãe. não tinha a menor idéia das coisas que me aconteceriam apenas um ano mais tarde. naquele tempo, eu insuflava meus amigos contra raul seixas e seus seguidores, bebia vodca nacional e gostava de comprar pão pessoalmente. um ano mais tarde (apenas) eu detestaria o pão feito naquele estabelecimento sujo e infecto, não tomaria nada alcoólico e nem teria qualquer nota contra cantores de voz pequena. marangón era detestável. além de pouco inteligente, era machista e baixinho. muitas qualidades de um homem são em vão quando ele é baixo. então me desmintam as mulheres. marangón tinha uma pelada marcada e sagrada às quartas-feiras e tentara cinco vestibulares para medicina quando ainda não tinha aquela porção de rugas esparramadas pelo rosto. era um homem que se devia admirar por trás. não merecia um segundo do olhar de uma mulher interessante. um ano mais tarde, esta avaliação sobre marangón seria desprezada. naquela noite, um ano antes, marangón teve a ousadia de me provocar. quando dei por mim, a arma já estava em riste e ele já havia sido desovado no inferno. un saison en enfer ou coisa que o valha... era essa a frase que rimbaud me dizia quando aparecia fantástico em meus sonhos.

Ana Elisa Ribeiro
Belo Horizonte, 11/8/2004

 

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