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Quinta-feira, 12/8/2004
Boa Tarde Às Coisas Aqui Em Baixo, de A L Antunes
Ricardo de Mattos

porque o inferno consiste em lembrarmo-nos a eternidade inteira não é verdade? (Lobo Antunes)

Na entrevista que o historiador e professor Joaquim Romero de Magalhães concedeu à revista Nossa História de Junho de 2.004, perguntou-se-lhe acerca da presença de livros de historiadores portugueses no mercado editorial brasileiro e de brasileiros em Portugal. O entrevistado respondeu jesuiticamente com outras duas perguntas, nas quais revela uma crítica: "Onde é que estão os escritores portugueses no Brasil? E onde estão os escritores brasileiros em Portugal?". Ele não se restringiu à literatura historiográfica em particular, sua interrogação abrangeu a literatura geral. Felizmente, além de Saramago, Eça de Queiroz e Camilo - sem tocar nos nomes dos poetas -, o leitor brasileiro já pode incluir em sua lista António Vieira, Miguel de Sousa Tavares e António Lobo Antunes. Se quiser outros nomes, e fará bem querer, pode procurá-los enquanto ataca as mais de mil páginas resultantes da somatória dos romances d'estes dois últimos, recém lançados no Brasil.

O escritor português António Lobo Antunes (1.942) nasceu em Lisboa, filho primogênito de família com numerosos membros e no seio da qual recebeu amplos e variados estímulos intelectuais. Embora desde cedo desejasse ser escritor, formou-se primeiro em Medicina. Exerceu inicialmente a profissão de médico na então província portuguesa de Angola, já iniciada a guerra pela independência. Conta em entrevista que iniciava suas operações tendo ao lado a um tratado de cirurgia e ao outro um auxiliar apavorado com o sangue. Contanto mantenha suas visitas aos hospitais, sua dedicação definitiva à literatura deu-se a partir de 1.985. Indica como influências a literatura - Faulkner, Hemingway, Scott Fitzgerald, Thomas Wolf - e o cinema norte-americanos, o cinema italiano e autores que o acompanham desde a juventude, como Céline, Sartre, Camus, Malraux, Júlio Verne, Simenon bem como outros que lhe chegaram mais tarde, como os russos Tolstoi e Chekov. Afirma ser a escrita um instrumento a permitir-lhe a fuga e o equilíbrio. Entre seus temas destacam-se a morte, a solidão a frustração e, mormente nos primeiros, a guerra colonial luso-angolana. A burguesia urbana é freqüente nas suas páginas. Já tem escritos os livros: Memória de Elefante, Os Cus de Judas, Conhecimento do Inferno, A Explicação dos Pássaros, Fado Alexandrino, Auto dos Danados, As Naus, Tratado das Paixões da Alma, A Ordem Natural das Coisas, A Morte de Carlos Gardel, Crônicas, Manual dos Inquisidores e O Esplendor de Portugal. A obra Os Cus de Judas já fez parte da lista de livros indicados para o vestibular d'uma universidade paulista. O mais novo romance é Boa Tarde Às Coisas Aqui Em Baixo, de 2.003.

Eis um livro peculiar, começando pela forma de escrita escolhida. Formado por um prólogo, três livros com dez capítulos cada um e um epílogo, n'um total de 32 partes. Cada uma d'estas partes é formada por uma só frase. Como o volume possui 565 páginas, cada uma das "frases capítulos" ocupa em torno de dezessete d'elas. A disposição do texto, entretanto, não permite a esta especificidade da pontuação atrapalhar a leitura, que pode ser lenta e pouco objetiva, mas ao final satisfatória e surpreendente. Lendo com atenção, os fatos encaixam-se e o entendimento tem lugar. Nem as citações de diários ou cartas possuem pontuação convencional e são por isso incorporadas ao "texto principal" (página 104, v.g.). Talvez a única coisa a causar maior dificuldade seja o amplo emprego de metáforas e as citações de fatos históricos e referências culturais angolanas. No primeiro caso, a metáfora do "vestido vermelho" aplica-se à comparação feita por uma menina de manchas de sangue com as vestes de sua mãe. O "alvo" pode significar tanto o ponto de mira quanto o português - branco - a ser expulso de Angola ou morto. No segundo caso, a referência ao "soba", termo que no idioma quimbundo significa chefe, pequeno rei. Quando o escritor narra o tratamento destinado ao soba, ao qual se ordenou que se ocupasse da costura para os brancos, pode-se entender duas coisas: ou a humilhação do indivíduo obrigado a ocupar-se de trabalhos desprezados pelos colonizadores - "Ficou mulher também" -, ou a humilhação dos nativos em geral, soberanos em sua terra, mas reduzidos à escravidão pelos estrangeiros. O mesmo diz-se dos "mabecos": ou são os cães selvagens cercando vilas abandonadas atrás de comida, ou são soldados sorrateiros preparando-se para atacar os "alvos". Repare-se por fim, nas constantes repetições de expressões - Esta era a casa -, onomatopéias - Pseps, Cuá Cuá - e perguntas - Ele é preto?; Sua filha não cresce?.

"ignorando que a gente em Angola não chora, nunca teve lágrimas, deixamos isso aos telhados, depois das chuvas, por nós"

Deve-se partir dos princípios de que se não trata da visão portuguesa do conflito, e que a nacionalidade da testemunha em nada influi. Angola é um país de longas batalhas anteriores e posteriores à proclamação da independência, em 1.975. Primeiro lutou-se para decidir quem não mais deveria governar e depois a quem caberia assumir a liderança. A data oficial da luta armada pela sua autonomia é quatro de fevereiro de 1.961, quando a casa de reclusão, um quartel e a Emissora Nacional foram atacados por membros da "União das Populações de Angola" - UPA. Este o partido mais antigo, depois transformado na "Frente Nacional de Libertação de Angola" - FNLA -, partido do qual alguns dissidentes afastaram-se para formar a UNITA. Obtida a independência, iniciou-se a guerra civil tendo, grosso modo, a um lado o Movimento Popular Para Libertação de Angola - MPLA -, partido governante de orientação marxista. Ao outro lado a UNITA, oposição apoiada pela África do Sul e pelos Estados Unidos da América. Até o Brasil esteve envolvido, pois o novo país, além de ter pertencido no século XVII à jurisdição da Bahia, era o principal fornecedor de escravos. O desenvolvimento da guerra interna estendeu-se até meados da década de noventa do século passado e suas conseqüências não serão apuradas tão cedo. O número de minas explosivas é ignorado. Um dado constantemente repetido é a emigração de 400 mil portugueses, o que significou o colapso da economia. Estes são dados históricos, encontráveis em qualquer enciclopédia. Boa Tarde às Coisas Aqui Em Baixo alterna, capítulo a capítulo, o testemunho de membros da população e de representantes governamentais de Lisboa. O primeiro governador, Seabra, equipara-se a um touro destinado a substituir na arena outro já abatido.

Para ir além





Ricardo de Mattos
Taubaté, 12/8/2004

 

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