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Segunda-feira, 16/8/2004
Michael Moore e o grande mentecapto
Lucas Rodrigues Pires

Tem-se um impasse ao ver Fahrenheit 11 de Setembro: acreditamos em Michael Moore, um documentarista oriundo da pequena Flint, Michigan, e chegado numa polêmica ou em George W. Bush, oriundo do Texas e atual presidente dos Estados Unidos da América? Desde já, respondo: fico com o primeiro.

Mentiroso, tendencioso, manipulativo. Adjetivos dirigidos ao filme, até certo ponto com alguma razão. Moore é exagerado, manipula imagens e sons para fazer crer sua tese de que o presidente Bush venceu fraudando uma eleição e que é um tremendo idiota a conduzir a maior nação do mundo. Mas, pelo que se viu e ainda se vê, ele tem razão.

Após Tiros em Columbine, que levou o Oscar de melhor documentário no ano passado e rendeu a Michael Moore um tremendo discurso anti-bush para milhões de espectadores, esse gordinho simpático - o protótipo do looser e nerd, que os americanos adoram definir, rotulando aqueles que não se encaixam entre os medíocres - o diretor resolveu pegar pesado em sua empreitada contra Bush e seus capangas ultraconservadores. Se neste ele usava o massacre na escola de Columbine (dois garotos entraram na escola com armas e metralharam alunos e professores) para denunciar a criação de um estado permanente de pânico e medo por parte da mídia e governo, o que justificaria a excessiva taxa de portes de armas dos civis americanos e o imenso lucro da indústria bélica, em Fahrenheit 11 de Setembro Moore denuncia explicitamente o presidente Bush e suas relações promíscuas com empresas petrolíferas e a família Bin Laden, além de sua incapacidade intelectual de governar um país. Seu ponto é claro: Bush causou a catástrofe de 11 de setembro, mentiu quando da invasão do Iraque e é incapaz de defender o povo americano.

O maior mérito de Moore num país como os Estados Unidos, pregadores da liberdade e da democracia pelo viés da violência e dominação, é exatamente romper com a autocensura e com o ufanismo cego e irracional que tomou conta de todos. Fahrenheit prova que os Estados Unidos é um país de idiotas governado por um idiota-mor que tem todo o aparato da mídia (e do Congresso e da população amedrontada) para fazer de todos full-time idiotas. Moore é o cavaleiro errante solitário que corre rumo ao inimigo. Sabe que sua vitória seria a de todo o país, mas faz de sua busca um tanto quixotesca seu próprio meio e estilo de vida. No fundo, é como a citação de George Orwell lembrada no filme, na guerra não é possível haver vitória, apenas derrotas. Com Bush, a derrota é certa. Perdem todos, Estados Unidos e todo o mundo. Ganham Bush, sua trupe petroleira e os terroristas, que conquistam cada vez mais motivos para atacar o país.

Michael Moore é genial como um ser midiático e em Fahrenheit 11 de Setembro ele dá uma aula do que é cinema. Cinema é a arte da manipulação, tornar crível uma história através de imagens e sons. Ele sabe manipular com primor as emoções e o raciocínio de quem vê seu filme. Une diversas cenas, recorta outras, faz trucagens nelas, insere uma trilha sonora cabível com seu interesse (geralmente músicas que refletem seu ponto de vista ou uma trilha instrumental que cria a atmosfera do suspense ou da comédia) e nos entrega um material rico em informação de conteúdo e de linguagem. Um Bush absolutamente imbecil nasce de suas colagens: um ser humano desprezível, babaca ao extremo, aproveitador e irresponsável filhinho de papai que recebeu do céu a presidência da república.

A montagem é o grande lance de Fahrenheit 11 de Setembro depois de sua extensiva pesquisa. É através dela (como tudo no cinema) que o efeito de sentido é percebido no espectador, é ela que constrói o sentido que seu autor quer dar ao que fez. Não há edição imparcial, assim como não há jornalismo totalmente imparcial. Esse dogma já é logo de cara desconstruído e assumido por Michael Moore, que explicita sua aversão e condenação a George W. Bush e sua política. Essa tomada de posição, fácil em se tratando de Bush (podem ver que aqui, neste texto, eu também tomo desde o início uma posição contrária a Bush), pode gerar dois sentimentos: maior aproximação do espectador e conseqüente simpatia por sua postura, ou sua execração pela distância ideológica. E, dentro disso, deve-se ter dois cuidados: no primeiro caso, não crer em tudo que se é dito e confirmado para não cair no mero assentimento acrítico, no segundo para não fechar os olhos - por questões de orgulho, antipatia pessoal (sim, Michael Moore tem milhares de detratores), de partido ou patriotismo idiota - para uma realidade que se torna nociva a todo o mundo e beira o autoritarismo fascista.

Há cenas excepcionais em Fahrenheit 11 de Setembro - umas esclarecedoras, outras ingênuas e manipulativas ao extremo. Vemos diversas vezes Bush fazer comentários diante das câmeras, sempre com uma piadinha infame para fazer rir jornalistas e convidados de plantão; pela repetição, Moore coloca Bush como um grande mentiroso (as razões pra invasão ao território de Saddam Hussein - iminente ameaça e posse de armas de destruição em massa - não existem) ao invadir o Iraque, mas erra ao contextualizar o Iraque como uma nação em paz e inofensiva (a união de uma narração em off sobre um Estado perigoso, repleto de armas e às vésperas de atacar os EUA contrastam com imagens de civis iraquianos brincando, soltando pipa e festejando um casamento); as ligações da família Bush e o vice-presidente com o petróleo e os árabes parecem incontestáveis, e é sensacional a montagem da invasão do Iraque com Bush e sua turma caracterizados num filme de faroeste. Mas duvidosas são as informações de que Bush passou quase metade de seus primeiros meses de mandato de férias...

Muitos se perguntam como um filme desses venceu o Festival de Cannes e usam tal premiação para atacar o próprio festival (tornou-se anti-americano, uma richa França versus EUA, dizem). A resposta é simples: há a urgência para se detonar Bush da Casa Branca. Há tempos o cinema não era tão político como foi agora. Colocar Fahrenheit 11 de Setembro nos holofotes era o meio de se protestar contra um governo autoritário fantasiado de libertário. E a França é o espaço do cinema político em que nasceram as vanguardas dessa arte e influenciaram diversos cinemas em todo o mundo. É o cinema francês que faz frente ao hollywoodiano, ícone do imperialismo americano.

Afinal, o que pensar após assistir a Fahrenheit 11 de Setembro? É Bush tudo aquilo que Michael Moore diz? É George W. Bush o grande mentecapto pintado pelo filme? Não sei quanto a vocês, mas, antes e depois de ver Fahrenheit, tenho a nítida impressão de que Moore mente menos que Bush... Muito menos...

Lucas Rodrigues Pires
São Paulo, 16/8/2004

 

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