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Terça-feira, 24/8/2004
Jornalismo político ontem e hoje
Luis Eduardo Matta

O mês de julho de 2004 foi marcado por uma notícia triste, devidamente registrada aqui, no "Digestivo nº 184": o fim prematuro d'O Pasquim21, a versão ressuscitada e reformulada do antigo e célebre jornal de resistência à repressão política do regime militar. Em sua reedição, a publicação contava com uma equipe de colaboradores de primeira linha - muitos dos quais egressos do primeiro Pasquim - um criativo e arrojado projeto gráfico, impressão em papel de muito boa qualidade e um sistema eficiente de distribuição nas principais capitais. Eu costumava adquirir o jornal com alguma regularidade e sempre me deliciava com o humor ácido e inteligente dos textos, tiras e charges, com as críticas a questões da atualidade, muitas feitas por meio de uma ironia mordaz e apreciava, sobretudo, o fato de ter em mãos uma publicação de alto nível que demonstrava um esforço em manter o bom senso nas análises, apesar de, vez por outra, tropeçar nas suas assumidas convicções políticas, esquecendo-se, nestas ocasiões, de que o apego a crenças e ideologias, sejam elas quais forem, não pode, jamais, sobrepor-se à percepção objetiva e implacável da realidade, ainda mais num segmento como o da imprensa, em cuja atuação livre e honesta repousa um dos pilares capitais da saudável estabilidade democrática.

A pergunta que não quer calar, portanto, é: se o jornal era possuidor de tantas qualidades, se apresentava requisitos de sobra para assegurar uma carreira duradoura e consistente num país carente de publicações semelhantes, por que se viu forçado a encerrar suas atividades? Imagino que muita gente tem, na ponta da língua, uma explicação automática e perigosamente óbvia: porque o povo brasileiro não lê praticamente nada, porque somos uma pátria de ignorantes funcionais, na qual os jornais só sobrevivem graças aos cadernos de esportes, de TV e às seções de horóscopo; querer, portanto, que um periódico semanal, concebido e levado a cabo por veteranos intelectuais vingasse, era uma utopia tão disparatada quanto a crença ingênua e algo apaixonada - em voga até muito recentemente -, de que a mera chegada ao poder no Brasil da esquerda (na acepção tradicional do termo), capitaneada por um ex-operário oriundo das massas iria, num piscar de olhos, trazer uma solução imediata e milagrosa aos seculares problemas do país os quais, de tão antigos, encontram-se entranhados na sociedade, como mofo num porão úmido que não é ventilado há décadas.

A questão, contudo, não é assim tão simples. É verdade que o povão, em geral, não se interessava pelo Pasquim21 (como não se interessa pela Bravo, pela Cult, pela Carta Capital, e por aí adiante), pois a maioria, lamentavelmente, ainda mal é capaz de decodificar uma frase breve e elementar de sujeito, verbo e predicado, que dirá assimilar as elaboradas e bem-humoradas análises que o jornal publicava todas as semanas. Mas, o fato é que, desde a chegada do primeiro número às bancas, em fevereiro de 2002, eu me incomodava com a sensação de estar diante de uma publicação brilhante, porém fora de sua época, não pelo conteúdo e sim pela relação com o público. Explico:

Vivemos, hoje, num Brasil muito diferente daquele dos anos setenta, quando o primeiro Pasquim vicejou. Desde então, tivemos a lei da anistia, o regime militar acabou pacificamente e a democracia consolidou-se, assegurando liberdade de imprensa, pluripartidarismo e eleições diretas a cada dois anos. O passado autoritário, apesar de ainda recente, tornou-se uma referência vaga e sem grande significado para a maior parte dos brasileiros. A queda do Muro de Berlim, o desmantelamento da União Soviética e a conseqüente decadência das ilusões socialistas frente ao avanço impiedoso do trator capitalista, puseram em xeque a tradicional divisão política bipolar que, durante décadas, alimentou o embate ideológico em todo o Ocidente. A simples oposição entre direita e esquerda, apesar de continuar a existir e a rever seus conceitos, dando vida a novas formas de pensamento em sintonia com as demandas do mundo atual, já não é suficiente para diagnosticá-lo e propor-lhe, sozinha, soluções factíveis e convincentes.

Do mesmo modo, o fim da censura política e a crescente concorrência entre as empresas de comunicação fizeram deflagrar uma prática inédita no Brasil de se denunciar abertamente atos de corrupção e incompetência administrativa em todas as esferas do poder público nacional o que, conjugado ao eternamente precário (quando não mal-intencionado) desempenho das nossas autoridades e legisladores no intuito de dar ao país condições decentes para que se desenvolva social, humana e economicamente, levou a opinião pública - antes esperançosa de que o retorno à democracia, afinal, trouxesse ao país as melhorias necessárias tão sonhadas -, a, gradativamente, desenvolver uma notória aversão por política, a ponto de ver no próprio ato de votar um sinônimo de opressão e perda de tempo; isso, apenas vinte anos depois de multidões terem saído às ruas de todo o Brasil para exigir Diretas Já. Política no Brasil é um tema que caiu em desgraça. As pessoas estão desinteressadas, revoltadas, céticas, indignadas, desesperançadas e isso é especialmente verdade entre a classe média urbana, que constitui, justamente, o público alvo de publicações na linha d'O Pasquim21.

Se as coisas chegaram a esse nível, como, então, viabilizar a comercialização de um jornal cujo foco principal é o mundo político numa sociedade com ódio de tudo relacionado a política, ainda mais se valendo de uma retórica ideológica que conquistava legiões de seguidores há trinta anos, mas que, hoje, não encontra quase nenhum eco numa sociedade inteiramente mudada, com dilemas e paradigmas diferentes e muito mais complexos? Talvez, fazendo um jornalismo em sintonia com a realidade e a linguagem de agora. Nos anos setenta, o humor d'O Pasquim representava um importante foco de resistência ao arbítrio da ditadura; suas charges e textos inteligentes, repletos de mensagens nas filigranas, funcionavam brilhantemente, pois a marcação cerrada da censura não permitia que fosse de outra forma. As pessoas liam o jornal porque sabiam que encontrariam nele um conteúdo subversivo, extremamente valioso numa época em que a grande imprensa se achava à beira da asfixia. Hoje, no entanto, a situação é outra. Charges, músicas de protesto e sátiras inteligentes já não satisfazem, sozinhas, o leitor politizado e preocupado com os rumos do país. A opinião pública tornou-se menos romântica e mais pragmática. De modo que, o único jornalismo político combativo possível no Brasil de hoje é aquele que se incumbe de trazer à tona, de forma cruel e sem disfarces, a podridão que vem corroendo o estado brasileiro desde o seu nascimento: o jornalismo investigativo, de denúncia e amparado por um eficiente esquema de apuração de dados e fatos.

Enfrentar o poder sempre foi uma tarefa perigosa e não será justamente agora, com o Brasil pegando fogo, que isso irá mudar. Assim como o pessoal d'O Pasquim enfrentou as baionetas há três décadas, hoje os que quiserem enveredar por esse caminho terão de se armar fortemente para poder sobreviver: arregimentar uma equipe de repórteres audaciosos, perspicazes e corajosos; contar com o apoio de um departamento jurídico ágil e atuante, para dar conta da enxurrada de processos que, certamente, desabará sobre o jornal após as primeiras denúncias; ter nervos de aço para suportar as inúmeras pressões, ameaças de retaliação e de morte que se sucederão e possuir um bom ativo financeiro para custear desde as despesas com as investigações (que poderão levar meses, envolver viagens dispendiosas, contratações de assistentes e, eventualmente, o pagamento de subornos estratégicos a informantes-chave) até os gastos com advogados e, num caso mais grave, com a segurança pessoal dos repórteres e seus familiares. Além disso, para cativar de vez os leitores, o jornal precisará estar sempre na dianteira e dar as notícias em primeira mão, antecipando-se à grande imprensa. Resumindo: trata-se de uma empreitada difícil, cara, tremendamente arriscada, que pode condenar seus idealizadores a uma vida de turbulências e à ira eterna dos poderosos, historicamente habituados a dispor do erário como se fosse uma extensão dos seus feudos e conglomerados. Mas, infelizmente, é a única que se apresenta viável frente ao atual quadro político brasileiro.

De resto, faço votos que Ziraldo, Zélio e toda a turma d'O Pasquim21 já estejam bolando uma nova publicação e reapareçam o mais breve possível e com força total. Um jornal como o Pasquim, com toda a sua criatividade e inteligência em alta voltagem, faz falta numa sociedade como a nossa, cada vez mais poluída pelo vazio, pela futilidade e pela baixaria repetitiva. Mesmo porque, humor nunca é demais, ainda mais o de boa qualidade, feito por gente que entende do assunto e sabe a diferença que uma palavra bem colocada pode fazer num ambiente de cerceamento de idéias.

Luis Eduardo Matta
Rio de Janeiro, 24/8/2004

 

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