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Segunda-feira, 30/8/2004
Olga e a história que não deve ser esquecida
Lucas Rodrigues Pires

O filme Olga, baseado no livro de Fernando Morais a respeito da alemã comunista que foi mulher do líder comunista brasileiro Luiz Carlos Prestes, enfim chegou aos cinemas. Com pinta de grande sucesso, com o rótulo de superprodução a arrebatar platéias e com a marca de um diretor de novelas consagrado - Jayme Monjardim, de Pantanal e A Casa das Sete Mulheres, entre outras.

A vida de Olga Benário Prestes foi digna de ser filmada. Revolucionária, amante do maior nome do comunismo no Brasil, viveu no período entre-guerras e sofreu pela sua condição de judia. Filha de uma família de classe média alemã, rompeu com a mesma para se dedicar à causa socialista, unindo-se ao governo revolucionário soviético. Olga, o filme, mostra desde sua saída de casa, ainda jovem, pela incompatibilidade com a postura da família até sua morte (sim, qualquer espectador minimamente informado sabe que ela morreu nas mãos de Hitler e seu regime nazista) numa câmara de gás em 1942.

Do Brasil ela se tornou conhecida e ganhou relevância histórica justamente por seu envolvimento com Prestes, o mesmo que se elevou contra o governo brasileiro na então chamada Coluna Prestes (uma referência apenas reverenciada no filme, que iniciou o contato e admiração de Olga pelo futuro esposo) e viveu quase a vida toda clandestinamente, preso ou perseguido por Getúlio Vargas. Seu romance com Prestes rendeu-lhe uma página de destaque na história do Brasil contemporânea, coisa que o livro de Fernando Morais engrandeceu e, num certo sentido, fez jus a seu nome.

O filme é formado por diversos flashbacks de Olga já presa e às vésperas de ser assassinada. De seu rosto sem cabelos, sofrido, mas que nunca deixou de transmitir emoção e compaixão. A atriz Camila Morgado, apesar de uma interpretação um tanto mecânica, tem seu forte justamente na expressão facial, especificamente em seus grandes olhos azuis. Seus olhos representam sua força e sua ambição, sua trajetória e seu sofrimento, seu desencanto e sua esperança. É através deles que Olga se apóia como narrativa, são eles a guiar, a insistir, a dominar o centro das telas. Duas imensas bolas azuis hipnotizantes que fazem de Olga a grande heroína que o filme quer construir. Olga, uma heroína nacional, mesmo sendo estrangeira.

Os olhos de Olga são também o grande chamariz da história. Num filme em que predomina o cinza, o preto e o branco, a força de um par de olhos azuis surge como aquilo que pode fazer a diferença. Pela iluminação, muitos planos fechados e filmagens em interior, o cinza e sua monotonia gerados são sempre quebrados pelo profundo azul de seus olhos. Como no poema em que Prestes e Olga declamam ao fazerem amor e sempre relembram, "Iluminar... Iluminar como o sol, iluminar e só". Os olhos de Olga são exatamente isso - a iluminação que o mundo precisaria naquele instante (e no de hoje também, se pensarmos que toda obra fala de seu próprio tempo). Eles funcionam tal qual A Lista de Schindler, de Steven Spielberg, um filme todo preto & branco em que a única coisa com cor é uma garotinha de vestido vermelho que surge na tela por alguns segundos em meio aos cadáveres do holocausto.

Apesar de o filme ser centrado quase o tempo todo na figura de Olga Benário, os coadjuvantes conseguem ser excelentes dentro do elenco montado pela produção. Aliás, o que parece indiscutivelmente impecável em Olga é a produção, a escalação de elenco e direção de arte. Osmar Prado como Getúlio Vargas, Floriano Peixoto como Filinto Muller, Murilo Rosa como um policial alucinado pela captura de Prestes e Luis Mello como o pai de Olga têm pequenas participações, mas representam os grandes nomes do cenário nacional da época com destreza e convicção. O todo funciona muito bem, com grandes atuações numa narrativa que não se perde em nenhum momento, exceto naqueles em que o diretor se dedica a explorar exaustivamente o romance entre os protagonistas, caso do encontro no navio na volta ao Brasil.

Em se tratando do casal protagonista, Prestes e Olga, interpretados por Caco Ciocler e a já citada Camila Morgado, há pouca química entre eles e parece que Monjardim não soube encontrar a mão para as cenas de amor e conversa entre eles. Tanto um quanto outro soam mecânicos demais, frios demais. Não têm a sutileza e a expressão de quem se apaixona. Essa falta de química é ainda mais acentuada pelo físico de cada um. Talvez por ser Olga a personagem central da trama, ela aparece ao lado de Prestes sempre mais alta, mais altiva e mais poderosa, dona da situação. As cenas entre eles - basicamente plano e contraplano - reforçam ainda mais essa distinção, focando Prestes de cima e Olga de baixo. A impressão que fica é a de uma Olga extravagante, que extrapola a pequenez de Prestes. Diante de Olga, Prestes é um mero coadjuvante, ser humano ínfimo diante do poder e força daquela mulher que o olha com olhos de um brilho frio, tal qual uma pérola recém-colhida.

O único momento de força entre Olga e Prestes é exatamente o da separação após serem presos. Separados para interrogatório, abraçam-se com todas as forças e são aos poucos "descolados", com as mãos de cada um se arrastando pelo braço do outro até que elas se encontram e enfim se desatam. Ironias do amor, esta seria a última vez que se viam e se falavam, um amor que durou pouco (aproximadamente dois anos), mas deixou marcas profundas e uma filha - Anita Leocádia.

Na forma do filme reside o maior problema de Olga. Por razões que podemos conjecturar aqui, o diretor Monjardim filmou pouco mais de duas horas de uma única forma. O filme tem cara de novela das oito da TV Globo do início ao fim, não há nenhum plano que fuja do plano/contraplano e do plano americano (aparece a pessoa da cintura pra cima). Além do mais, ele filma quase que sempre com a câmera colada ao rosto dos personagens, resultando num filme extremamente fechado, quadrado, em que só se vê o rosto dos personagens e quase nada do cenário. As cenas de interior são de uma pobreza estética capaz de dar às novelas um ar de vanguarda. A todo momento o que se vê é apenas rostos, expressões faciais, bocas murmurando e olhos mirando.

Essa opção de linguagem (mais televisão do que qualquer coisa) pode ser explicada por diversos fatores, entre eles o econômico, por, assim, não precisar se preocupar com construções de cenários. Mas também podemos dizer que o filme foi produzido já pensando para a sua exibição posterior na televisão (claro que na TV Globo, co-produtora do filme pela Globo Filmes) e que o formato, próximo das novelas, mais palatável às massas, garantiriam a audiência. Outra razão? Essa linguagem com certeza também irá atrair mais público para os cinemas, que numa linguagem mais "familiar" (para não dizer outra coisa) não teria dificuldades para entender e deglutir um filme com uma temática já por demais pesada.

O roteiro, escrito pela produtora Rita Buzzar, também busca simplificar a história em prol da fluência da narrativa, apesar de constantes flashbacks a embaralhar tempos. Dentro da temática da revolução vivida nos anos 20 e 30 no Brasil e no mundo - universo de convivência de Olga e Prestes - e do nazismo e da presença dos campos de concentração, os clichês não poderiam faltar. Mensagens de esperança, dor e sofrimento se alternam a discursos revolucionários e utópicos. Olga quer mudar o mundo, como todo bom revolucionário socialista que se preze, nem que seja à força. Não há maior clichê do que a conversa entre a adolescente Olga e seu pai, quando esta decide deixar a família e se unir aos soviéticos na luta pela revolução e pela instalação do comunismo em todo o mundo (menos na Suíça, pois é preciso haver algum lugar para se descansar dos comunistas, como diz um dirigente do alto escalão soviético na única piada que o filme traz).

Olga oscila entre tempos mortos e grandes momentos. Por ironia, os dois momentos mais mágicos do filme acontecem em cenas quase que seqüenciais. Após nascer sua filha, Olga amamenta por 14 meses na enfermaria da prisão alemã. É o único momento em todo o filme em que a vemos feliz, alegre, sorridente. Numa montagem sem diálogos, temos diversos fade in e fade out (a tela escurece devagar e clareia devagar) de situações dela com a filha recém-nascida. Ao fundo, a voz da personagem escreve uma carta a seu amado, preso no Brasil, falando sobre a pequena. São cenas de um lirismo raro num filme que trata de um mundo embrutecido, cenas que destoam de todo o restante. Ao mesmo tempo, essas cenas são o prólogo para a crueldade que viria depois - a tomada à força da filha de seus braços. Novamente Camila Morgado sozinha em cena após as oficiais nazistas lhe tirarem a criança dos braços. Num acesso de raiva e dor, ela esperneia, chora, se debate, luta pela posse da filha. Derrotada, caída ao chão diante da grade que a separava dos demais recintos, sofre a perda de sua felicidade, demonstrada naquele primeiro momento dito acima. Seus olhos, sempre eles, dizem mais que qualquer xingamento, que qualquer palavra de cólera proferida ao vento.

Olga tem um início canhestro, mas vai aos poucos se encontrando, principalmente depois da chegada de Olga e Prestes ao Brasil. Quando deixa o romance excessivo de lado (vício do cinema americano que já chegou ao nosso cinema) e prioriza a história, a revolucionária Olga Benário Prestes, o filme ganha em muito em interesse e qualidade. A pesquisa histórica foi bem-elaborada, contextualizando o período político brasileiro com rara inteligência no cinema. Deixa clara a posição de Vargas e seu oportunismo, mas não deixa de beber no maniqueísmo freqüente em se tratando de política (direita e esquerda, democracia e ditadura): Prestes, de um lado, e Vargas, de outro, representado no filme por seu braço direito, o oficial da polícia Filinto Muller.

O final do filme, com a leitura da última carta de Olga a Prestes e sua filha antes de ir para a câmara de gás, é o final eloqüente para uma produção que quis emocionar com a história de uma revolucionária que se descobriu mulher e mãe, mas não esqueceu nunca de crer e lutar pelo que acreditava. Até a sua morte, triste morte de um capítulo triste da história da humanidade, capítulo que não deve jamais ser esquecido para que não volte jamais a acontecer. Olga, mesmo com todos seus problemas, nos relembra e nos coloca nessa história.

Post Scriptum
Na revista Nossa História, edição de julho de 2004, saiu uma matéria a respeito de Olga Benário escrita por Anita Leocádia, a filha de Prestes e Olga. O texto é uma rápida passagem pela história da personagem, compondo quase que exatamente a mesma narrativa do filme. O que se vê no filme está nesse texto. Interessante para quem quiser saber de detalhes históricos que ficam perdidos na transposição ao cinema.

Lucas Rodrigues Pires
São Paulo, 30/8/2004

 

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