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Quinta-feira, 9/9/2004
A Sombra do Vento, de Carlos Ruiz Zafón
Ricardo de Mattos

"Nós existimos enquanto alguém se lembra de nós." (Carlos Ruiz Zafón)

O escritor espanhol Carlos Ruiz Zafón (1.964) inicialmente dedicava-se à ficção infantil. Após a premiação d'O Príncipe da Neblina em 1.993, refugiou-se em Los Angeles e empenha-se agora n'uma tetralogia sobre a história de Barcelona. O primeiro livro é A Sombra do Vento e se todas as resenhas lidas realçam a combinação de gêneros, deixam de mencioná-lo como uma grande e sincera homenagem ao livro, aos escritores e aos leitores. O livro é apresentado não só como objeto, mas também como portal de novos planos e enriquecedor da existência. É valorizado não o mero preenchedor de páginas, mas o escritor real, renomado ou não, cujas obras ampliam o espírito humano. E por fim, é homenageado o leitor que lê sem leviandade, apenas para passar o tempo, o leitor que termina um livro porém esforça-se em conhecer mais a respeito da obra e de quem a escreveu. Tão sincero é o apreço ao livro, que o autor é cortejado para autorizar a filmagem, mas não quer ceder os direitos sem garantias mínimas de fidelidade do filme ao escrito. Este, segundo ele, é mais importante que a "película".

Toda a narrativa transcorre em Barcelona, na Espanha sob o jugo de Franco. O fundo histórico é saliente porém não predominante, ou seja, as referências aos fatos da época ilustram sem a preocupação de reconstruir o período. A preocupação "de fundo" revela-se no ambiente. Não me recordo dos personagens reclamando de calor: sempre há chuva, neve, frio, neblina e nevoeiro. Reporta-se muito a acontecimentos pretéritos, que ao menos para mim, sempre são esbranquiçados, enevoados. Alie-se ao clima a descrição de palácios neo-góticos, casarões sombrios, lugares sinistros e compreender-se-á o motivo de apontarem influências de Edgar Allan Poe. Deveras, deixando o romance do espanhol, senti vontade de reler alguns contos do norte-americano. Além d'isso, o "Cemitério dos Livros Esquecidos" é de perceptível inspiração na Biblioteca de Babel, o famoso conto de Jorge Luis Borges - "Quando se proclamou que a Biblioteca abarcava todos os livros, a primeira impressão foi de uma extravagante felicidade".

O começo é simples: o menino Daniel é levado pelo pai ao mencionado Cemitério, escolhe um livro - A Sombra do Vento - e após a leitura interessa-se em descobrir mais sobre o autor, o primeiro desconhecido e depois misterioso escritor Julián Carax. O mistério que envolve Carax é labiríntico. Do lado de fora de um labirinto, podemos ver a porta de entrada e a de saída. A mesma coisa com o romance: logo nas primeiras partes suspeitamos qual seja o final. Ante a profusão de informações e pistas - falsas ou não -, chegamos a desconfiar se o autor terá êxito em apresentar uma solução plausível. Felizmente, ele é bem sucedido e as suspeitas do leitor não são facilmente confirmadas. Escritor e personagem - Carax - têm predileção por histórias macabras e de mistério. As mães dos colegas de escola do jovem Zafón procuravam a sua para perguntar o que tanto ele contava para seus filhos acordarem chorando à noite.

Escolhendo um escritor fictício, Zafón rejeitou trançar ficção e biografia. Sendo imaginário o seu Julián Carax, decidiu incluir entre seus méritos a autoria de vários livros que, embora pouco lidos por seus contemporâneos, despertaram a sede da Leitura nos que se dedicaram as suas páginas. O personagem Daniel Sempere testemunha: "Naquela tarde, de volta ao apartamento da rua Santa Ana, refugiei-me no meu quarto e decidi ler as primeiras linhas do meu novo amigo. Antes de perceber, tinha mergulhado completamente no livro (...) Os minutos e as horas transcorreram como numa alucinação. Horas mais tarde, aprisionado pelo relato, apenas percebi as badaladas da meia-noite repicando ao longe, no sino da catedral (...) O sonho e a fadiga queriam me derrubar, mas eu resistia a entregar-me. Não queria perder o encantamento da história nem dizer ainda adeus aos seus personagens". Eis dois pontos familiares a qualquer leitor. O primeiro refere-se a esta sanha de terminar a leitura de certos livros, passe o tempo que passar. O segundo, mostrando que na maioria dos casos não são os chamados "clássicos" que despertam o amor ao Ler, e sim obras de autores ditos "menores". N'este aspecto, frágil a distinção entre "grandes" e "pequenos" escritores. Por que chamar "menor" o escritor que despertou n'uma pessoa o gosto pela leitura e até mesmo pelo saber? Embora isso possa redimir uma infinidade de escrevinhadores, beira a ingratidão classificar como "de segunda linha" o autor que acompanhou nossos primeiros passos rumo às obras universais ou, principalmente, à evolução individual. Cada leitura tem sua fase e feliz a criança que cedo deparou-se com o livro correto.

Ainda sobre a grandeza ou pequenez dos escritores. Freud elaborou uma lista de dez livros que considerou notáveis e recentemente foi necessário escrever dois volumes para esclarecer quais são.

O fato do pai de Daniel apresentá-lo ao mundo dos livros é um dado valioso. Não só Sempere, pai, é dono d'um sebo de livros - um alfarrabista, como preferem os portugueses - mas também levou o menino ao grande armazém onde ficam depositados os livros esquecidos. Como Daniel provavelmente seguiria a carreira paterna, iniciou-o na tradição incitando-o a escolher um dos volumes com o compromisso de jamais desfazer-se d'ele. Não sei se foi intenção de Zafón, mas ele acabou por ressaltar o papel dos pais em impulsionar os filhos a conhecer os livros, papel este fundamental e decisivo. Não sou e nem descendo de intelectuais, mas tudo que li e estudei decorre de duas regras implícitas que acredito geneticamente asseguradas: a primeira consiste em pensar antes de falar ou fazer e a segunda consiste em estudar antes de pensar.

Um dos melhores personagens é Fermín Romero de Torres. Chamá-lo simplesmente "malandro" aproximá-lo-á em demasia do tipo descrito comumente pela prosa urbana brasileira e transmitirá uma idéia errônea. Pode-se melhor descrevê-lo como um Sancho Pança que obteve algumas luzes mas não alcançou a estupidez de Pangloss. O escritor teve grande inspiração ao criar esta figura extremamente hilária, enxerida e absolutamente leal aos amigos.

Para ir além





Ricardo de Mattos
Taubaté, 9/9/2004

 

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