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Quinta-feira, 23/9/2004
O Paciente Steve, de Sam Lipsyte
Ricardo de Mattos

"Nunca acontece de a literatura e o espírito de raciocínio se tornarem o patrimônio de toda uma nação sem que imediatamente se faça notar, na filosofia e nas belas-artes, o que se observa nos governos populares, nos quais não há puerilidade ou fantasia que não apareçam e não encontrem seguidores" (Marquês de Vauvenargues, Reflexões e Máximas, CCLXXI)

O Paciente Steve, escrito pelo nova-iorquino Sam Lipsyke, é mais um livro de crítica à superficial e consumista sociedade contemporânea. Não é uma obra grandiosa e talvez nem tenha vida muito longa. Contudo, além de rechear algumas horas com hilaridade histriônica, pode-se afirmar ser ele o que Fúria, de Salman Rushdie, poderia ter sido se fosse bem escrito.

Steve é um publicitário divorciado de 37 anos, pai da adolescente Fiona e autor de slogans famosos. Duas linhas definem-no e mesmo assim, no livro inteiro, ele é o único melhor apresentado. É o único a não deixar impressão de que escapou algum dado sobre sua personalidade. Se era intenção do autor prestigiar o vago, ele foi bem sucedido, pois os outros são obscuros, incertos, mal definidos. Ainda que variável o grau de indefinição, começa aqui a crítica a uma sociedade na qual se imagina conhecer as pessoas a partir de algumas poucas características exteriores, outras interiores mal inferidas e muitos dados fornecidos por terceiros de idoneidade questionável. Predomina o critério do "ouvi dizer", sempre aliado ao sigilo da fonte: Quem disse? É simplesmente incompreensível como as pessoas continuam com tanta superficialidade no conhecer e julgar as demais. Não percebem que isso apenas dissemina a desconfiança e aumenta a solidão, uma iguaria refinada que poucos têm paladar apurado o suficiente para apreciar.

O azar de Steve consistiu em cair sob os cuidados de dois charlatões ansiosos por notoriedade. Após alguns exames de rotina, os médicos - referidos no início somente como Mecânico e Filósofo - anunciaram a presença de certa doença desconhecida. Steve, pontificaram, um dia morrerá. Não se sabe quando, mas morrerá. Se um evidente embuste receber uma camada de seriedade e se tratado com o devido escândalo pela mídia, suas chances de adquirir credibilidade aumentam. Os dois requisitos são presentes no texto de Lipsyte. Primeiro o da seriedade: a doença é nomeada e descrita, bem como a imprensa solenemente convocada para uma entrevista coletiva. A "Síndrome Goldfarb-Blackstone Preparatória para a Extinção" - ou simplesmente PREXIS - caracteriza-se por ainda não possuir "causa identificável, o que não atenua sua fatalidade inquestionável. (...) Mas aqui está o complicador: ele vai morrer sem nenhuma razão conhecida. Talvez não hoje, talvez não amanhã, mas algum dia, irrevogavelmente. Ele pode não mostrar nenhum sinal disso ainda, mas mostrará, podem ter certeza". O segundo requisito, o do agitamento, tem lugar quando os médicos apresentam Steve como o único doente na cidade em estado terminal da PREXIS e permitem que repórteres mercenários divulguem as poucas e confusas informações.

"Doente em estado terminal" é uma expressão causadora de pânico. N'este mundo repleto de doenças gravíssimas, salta aos olhos a insensatez em se divulgar sem maior cuidado tal informação. Tanta irresponsabilidade, que em poucos anos a cidade foi assaltada por uma epidemia de PREXIS. Se o campo for fértil, a estupidez pode ter longo alcance e disseminar-se velozmente. Todo o calvário do personagem seria evitado se houvesse a honestidade inicial dos profissionais em dizê-lo apenas entediado. Aliás, já seria suficiente, pois o tédio é algo destrutivo. Na antiguidade mencionava-se o taedium vitae como resultado da existência ociosa e sem propósitos. É tarde quando, na entrevista coletiva, uma repórter conclui: "O senhor quer dizer que esse homem na verdade vai morrer de tédio?".

Condenado à morte pela Medicina, agonizando sem saber direito do que, Steve entrega-se àqueles que podem ser seus últimos prazeres. Alcançados todos os limites do seu cartão de crédito, gastas todas as suas reservas financeiras e abandonado por sua seguradora após realizar montes de exames, decide dar atenção ao folheto recebido de alguém, uma propaganda do "Centro de Recuperação e Redenção Leigas". Trata-se d'uma antiga simulação de acampamento de guerra para executivos, transformada em fossa para os dejetos humanos da sociedade. "Drogados, bêbados, malucos, doentes terminais, melancólicos, paranóicos, onanistas crônicos, estupradores de porcos, maus poetas, etc.: este é seu lar". A mistificação é explícita, e mesmo o personagem não sendo nenhum gênio consegue logo perceber que, ou as pessoas estão desesperadas e aceitam qualquer alternativa, ou a decadência é tal que não percebem o ridículo em que se envolvem. Não tendo nada mais a fazer ou perder, decide demorar-se para ver até onde segue toda a asneira. Isso, sim, é tédio e ausência de propósito. Os diretores são insanos de passado trevoso, atiçados em seus desvarios pelos "pacientes" reunidos. O louco progride em sua demência quando encontra adeptos. Atualmente, anda pelo Brasil um cretino dizendo-se a reencarnação de Jesus Cristo. Usa trajes semelhantes aos quais Êle é representado na iconografia. A patologia é protegida e mantida por seguidores trajados à judaica. Parece haver um ponto no Desespero em que o Homem perde sua lucidez e torna-se presa fácil de todo tipo de enganação. Um instante no desvario leva-o a agarrar-se à primeira coisa que surge com alguma promessa de alívio.

Não é ileso que Steve foge do Centro de Recuperação. Segundo o poeta e crítico francês Boileau-Despréaux (1.636/1.711), um estúpido encontra sempre outro mais estúpido que o admira. Após passar um período de recuperação na casa da ex-mulher, descobre que seu antigo cativeiro obteve um programa na televisão custeado pela venda de produtos via Internet e com audiência garantida pela interatividade do público. Os internos transformaram-se em produtores e diretores e novos espécimes foram acrescidos. Hoje, toda infâmia é comercializada. Este tema específico do reality-show macabro recebeu também um tratamento muito bom na novela A Exposição das Rosas, do húngaro István Örkény (1.912/1.979).

Para ir além





Ricardo de Mattos
Taubaté, 23/9/2004

 

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