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Segunda-feira, 27/9/2004
O Benfeitor
Andréa Trompczynski

A primeira vez que li A Metamorfose, de Franz Kafka (deveria ser redundância ter que citar o nome do autor de obras como esta), eu tinha treze anos e, claro, em minha mente infantil o que chamou a atenção não era todo o drama psicológico, mas o fato de se transformar em barata. Um homem? Pensei: Kafka é um bobo. Quando começaram os anúncios desse novo reality show da ABC, lembrei daquele pensamento. Sentia uma espécie de horror e prazer ao ter a oportunidade de assistir, em cores e stereo sound à prova definitiva e gravada de que um ser humano pode sim transformar-se em algo tão repugnante como a barata do livro. Daquelas cascudas, gigantesca. E seu nome é Mark Cuban, o benfeitor.

Ele é um bilionário de 46 anos do Internet Business. Jeans e camiseta, bonitão, fortuna comparável à de Donald Trump antes dos problemas com os cassinos. Teve a idéia desta competição entre dezesseis coitados (impossível não sentir pena) por um milhão de dólares porque achou que "seria divertido".

O jogo não tem regras pré-estabelecidas, ele parece procurar alguém com seus caracteres (deixando claro que isto é impossível, talvez um aprendiz), e desde a abertura até as histórias de sua vida, inseridas o tempo todo como exemplo de genialidade, todo o programa é um monumento-a-ele-mesmo. Admira os bons manipuladores, os que traem relacionamentos pessoais por dinheiro e os aduladores discretos, mas diz isto em outras palavras.

O show de horrores começou no primeiro programa, com a humilhação e eliminação de um participante que fez um infeliz -levíssimo- comentário contra Mark Cuban. E o ápice foi penúltimo programa: um teste em que times de quatro pessoas teriam três horas do valioso tempo de Cuban mais a chance de propor algo para que este tempo se tornasse interessante. Um dos grupos escolheu levar brinquedos para crianças em um hospital, para aquele tipo de propaganda típica da Lady Di, onde pobres ou doentes são estolas enfeitando seus pescoços para uma boa fotografia na People. Estes dez minutos de programa dariam um tratado. Enquanto gastaram pouquíssimo tempo com as crianças, o diretor do hospital tentava desesperadamente cativar o espírito solidário do "benfeitor". Foi angustiante, Cuban lançando olhares de desprezo e enfado enquanto o rosto do diretor suava em uma tentativa humilhante de puxa-saquismo. O homem não ficaria tão nervoso com a visita do Papa. E na saída, "o benfeitor" reclamava quase aos gritos de o quanto aquele tempo foi perdido. O quanto em dólares custavam aquelas três horas. E as pessoas do grupo tentando não parecer humanos e odiar Cuban, porque precisam concordar e sorrir com ar inteligente. Um milhão de dólares. Mas a maioria diz que é só pela competição.

Meu filho de seis anos teve uma idéia extraordinária hoje: que deveriam haver sacos de vômito como os dos aviões em todos os lugares. E que as pessoas deveriam andar com eles nos bolsos, como lenços de papel, para o caso de precisar em situações repugnantes. Adorei.

A Sabedoria de Dona Zeli
Dona Zeli mora no interior de São Mateus do Sul, numa chácara com o marido Sebastião. Plantam "o-quê-comer", criam umas galinhas e os filhos. Ela faz o melhor pão do mundo e é necessário que se coma com banha-de-porco e sal. Ela só tem a quarta série. É sábia. Um dezembro o Sebastião recebeu uma dinheiro a mais, a colheita foi melhor e deu para vender, alguém sugeriu que comprasse uma televisão, Sebastião gostou da idéia. Eu estava lá e ela me disse uma das coisas mais inteligentes que já ouvi em minha vida: "Até pensei em comprar, mas o seu Dito, meu vizinho, depois que comprou só fica sentado na frente daquilo, de manhã até à noite, nem vem mais aqui, nem em lugar nenhum. Falei para o Bastião deixar para lá e vamos é trocar a cerca, que está precisando."

Nem Tudo Está Perdido
A TV aberta brasileira é mais do que meu gosto pelo feio pode suportar. Às vezes ainda tento encontrar algum sinal de inteligência, em vão. Pessoas que nunca vi são artistas, assuntos como "Solange não-sei-o-quê alavancou sua carreira na banheira do Gugu" são debatidos com seriedade, e, com música de suspense uma médium diz que o filho dela (da Solange) não é do Vaguinho, que pela maneira como eles falam é também um artista famosíssimo. Vejo hoje nos jornais que o Roda-Viva, da TV Cultura, faz 18 anos. Um programa como esse na TV aberta e por tanto tempo é quase inacreditável. Nunca esquecerei de entrevistas antológicas, do tempo em que comecei a ler jornais e ouvir falar do programa onde pessoas que nunca estiveram na banheira do Gugu davam entrevistas (lembram Olivieri Toscani? O polêmico publicitário da Benetton? Um dos entrevistadores chegou a pular em seu pescoço gritando você não é publicitário coisa nenhuma!, e Toscani então por que é que sou eu que estou no meio da roda? Aquilo sim era "barraco bom"). Apesar do aniversário ser hoje, 27 de setembro, as comemorações serão adiadas para 18 de outubro. O site Cruzeironet informa que dos 900 entrevistados que já estiveram no programa, 560 já foram convidados e estarão presentes também todos os seis apresentadores que já passaram pelo Roda.

A Palhaçada do Da Kine Cafe
Helicópteros, camburões e força especial da polícia. Primeira página de jornais durante dias. Pessoas detidas. O que é, o que é? Uma invasão em alguma cracolândia fortemente armada? Não. Meia dúzia de hippies comprando maconha no Da Kine Cafe, na Commercial Street, em Vancouver. A maconha é droga ilegal, sim. Mas helicópteros? Enquanto a polícia norte-americana faz sua publicidade com imbecilidades como essa, recomendo às famílias investirem em muros eletrificados e casas blindadas. E aprendizado em casa para as crianças. O domínio do crack expande-se rapidamente nas cidades do Canadá, do centro para os bairros, e a guerra pelo monopólio está começando. Recomendo economizar o combustível dos helicópteros agora.

Diário de um Cucaracha
Cheguei no Brasil semana passada e foi impossível não chorar. Tentei controlar uma crise de ufanismo lendo os jornais, mas no canal nove do rádio do avião estava tocando Caymmi, uma covardia. Em minha cidade (pequena, bem pequena mesmo) todos estão curiosos para saber notícias da civilização "como é, conte tudo, como é lá?". Dou a mesma resposta do Obelix quando voltou à aldeia após uma aventura na Helvécia: "chato". E continuo devorando meu javali assado.

Andréa Trompczynski
São Mateus do Sul , 27/9/2004

 

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