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Terça-feira, 28/9/2004
Só Xerêm, por Cris Aflalo
Fabio Silvestre Cardoso

Em seu disco de estréia, Só Xerêm (Tratore, 2004), a cantora Cris Aflalo apresenta o espólio musical de seu avô, o compositor e multiartista Xerêm. Para quem não conhece, Xerêm foi um dos músicos e compositores mais profícuos que o Brasil já teve. Durante a era de ouro do rádio no País, ele era atração certa nas emissoras mais famosas e populares da época, como a Tupi, a Mayrink Veiga e a Rádio Nacional. Conforme conta a intérprete, o artista deixou para a posteridade, além de 45 discos 78 rpm gravados pela RCA Victor e pela Odeon, um vasto acervo de fitas, partituras, letras e memorabilia que compõem um rico panorama da cultura nacional, sem populismos, de 1930 a 1970. Esse rico material, contudo, estava até agora fora do alcance do público. Foi preciso que Cris Aflalo resgatasse este verdadeiro tesouro da música brasileira. Nesse caso, este trabalho está para além do resgate: é o redescobrimento de um artista que tem (ou deveria ter) um lugar cativo na evolução da música popular brasileira do século XX.

Cris Aflalo confessa que o principal motivo que a levou gravar o disco é o sentimento que Xerêm deixou em sua música. No programa Ensaio, da TV Cultura, a intérprete até se emocionou ao falar do assunto. A afirmação e a atitude, no entanto, não podem ofuscar os detalhes mais importantes do álbum: a música de Xerêm e a interpretação de Cris Aflalo. Juntos, são pontos que norteiam o ouvinte ao longo do álbum, que tem 13 canções. Nelas, Cris Aflalo é feliz em agrupar (e respeitar) as qualidades mais elementares de cada uma, de modo a produzir uma estrutura que não dá as costas à tradição regional tampouco sucumbe aos ritmos da moda - como o forró - pelos quais algumas músicas esbarram.

Um bom exemplo é a primeira faixa do disco, "Pisa no Pilão". Passado e presente estão misturados nesta releitura. De um lado, o xote, estilo que é muito comentado, mas pouco conhecido. De outro, a participação de Xerêm, direto de uma gravação aproveitada num sampler. O resultado, por incrível que pareça, é original. Em "Ainda me lembro", se a canção não é tão peculiar quanto a anterior, é justo dizer que o estilo é genuíno. Isso porque até mesmo as estrofes exalam sonoridade: "Ai, ai, ui, ui/ Me socorra quelemente/ Ai, ai, ui ui/ Já tô de cabeça quente."

Com efeito, a musicalidade das canções não se deve unicamente às performances dos instrumentistas. As letras de Xerêm possuem esse detalhe inato, como ocorre com "Obalalá". "Quero que te quero/ Peneirando esse baião/ Obalalá de pé no chão". O mesmo ocorre em "Soca Passoca", quando rima e ritmo fazem as vezes de um metrônomo: "Soca passoca/ A maneira do sertão/ Eu para cá, você para lá/ Na batida do pilão." No refrão seguinte, a impressão é que Cris Aflalo convida os ouvintes a participarem da dança: "Num passinho sensação/ Gingando assim/ Bate o pé/ Pisca pra mim/ Eu suspiro então, aí, aí... Na batida do pilão". Nota-se, ainda, a presença de instrumentos que concordam com o estilo das músicas. Assim, a presença de sanfona, triângulo e reco-reco, dando a impressão que cada detalhe foi minuciosamente trabalhado antes da gravação.

Em meio a alegria incensada pela dança e pela cultura popular, as canções mais introspectivas aparecem como um contraponto precioso, uma vez que há um "mito" de que, na música popular do nordeste, não há espaço para o lamento e para a reflexão. É o caso de "Só farta você": "Comprei toca e maracá/ Alfazema pra queimar/ E também é bom saber/ Quinté já tenho pensado/ No nome pra batizado/ Só farta você querê". A mesma melancolia encontra-se no "Lamento do sabiá", faixa que tem a participação de Hermeto Paschoal.

No (quase) choro "No automóvel não", a versatilidade de Xerêm é mais do que comprovada. Na melhor faixa do disco, Cris Aflalo também atinge o ponto mais alto de sua interpretação, possibilitando que o ouvinte "veja" o abrir e fechar de olhos, bem como todos os gestos da cantora. Cabe destacar, aqui, os violões (sete cordas e nylon) e a flauta transversal, tão bem executada por Simone Julian. A letra, por sua vez, é parte da rica tradição de humor que remonta um Rio de Janeiro, decerto ingênuo, pré-bossa nova, mas com suas peculiaridades: "Eu prometo um dia com você dar umas voltas/ Conhecer de perto a tal Barra da Tijuca/ Estrada do Leblon é uma coisa maluca/ Muita coisa eu prometo/ Mas no automóvel não".

De fato, essa ingenuidade permeia todas as letras de Xerêm, como se lê a seguir: "A giranda girou/ Giranda anda gira/ Gira anda girandou". A semelhança com um poema concreto é fascinante. No entanto, a rima simples pertence a um imaginário cujo significado é mais profundo que um mero jogo de palavras de estilo: "A giranda girou/ Vamos logo abandonar/ A tristeza maldita/ Pra ela não mais voltar".

Em certa medida, Só Xerêm possui uma inclinação ao folclore e ao regional, principalmente porque a obra musical do artista é um autêntico retrato cultural de uma época. Em seu álbum, Cris Aflalo consegue representar essa tendência não só porque possui elos afetivos com Xerêm, mas também porque realiza um trabalho musical, que inclui pesquisa e interpretação, com fidelidade absoluta aos diversos gêneros existentes. Nesse sentido, deve-se afirmar a qualidade do álbum de Cris Aflalo tanto pelo seu talento como musicista quanto pela sua notável homenagem à cultura brasileira.

Para ir além


Fabio Silvestre Cardoso
São Paulo, 28/9/2004

 

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