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Quinta-feira, 30/9/2004
Comida à moda da moda
Adriana Baggio

Comer está na moda. Claro que a comida sempre foi muito mais do que apenas uma maneira de suprir a mais básica das necessidades humanas. Os ingredientes dos pratos, a forma de preparo dos alimentos, os locais e circunstâncias das refeições sempre mostraram que a comida tem um forte aspecto cultural. Em relação à comida, percebem-se questões sociais, econômicas, comportamentais, religiosas. O ato de comer pode ser de inclusão ou de exclusão, de privilégio ou de socialização. Enfim, comer é um ato político.

Não consigo deixar de associar comida com moda, no sentido de vestuário. A moda enquanto disciplina também está na moda. Assim como o comer, o vestir é algo que tem preocupado as pessoas não como simples usuárias, mas como especialistas. Proliferam os cursos de estilismo e também surgem aos montes os cursos de chefs, as confrarias de gourmets, as publicações sobre como e onde comer. O paradoxo é a dificuldade de se manter nas duas "modas" ao mesmo tempo. Por mais que se vestir bem e experimentar novos sabores sejam dois valores almejados pelas pessoas, um sabota o outro. É impossível estar ao mesmo tempo em dia com uma bela silhueta e com os bares e restaurantes que surgem a todo momento...

É curioso que, com tantas opções de lazer e prazer proporcionadas pela tecnologia e pela liberalidade de costumes, as pessoas acabem se voltando para um prazer primário, como o do comer. Em volta desse ato está muito mais do que o sabor da comida. O comer enquanto lazer envolve o ambiente, a personalidade do lugar, a circunstância, as pessoas que comem no mesmo momento em que você. Envolve a etnia da comida e as experiências que você pode ter durante a refeição.

Seguindo uma tendência geral de consumo, o mercado da alimentação também percebeu que a marca de um restaurante ou de um produto precisa ter personalidade, precisa proporcionar uma experiência para quem consome. Essa experiência pode ser a da sofisticação e do luxo, que traz de sobremesa um travo de arrependimento pelo valor da conta pago sem titubeio, para não passar vergonha frente ao garçon. Também pode ser a da inovação e da originalidade, que às vezes faz parecer que já estamos há muito tempo longe do conforto e da naturalidade de casa. De qualquer maneira, uma das duas experiências pode ser o pré-requisito para impressionar as rodas de amigos onde, cada vez mais, as façanhas que contam se dão ao redor de uma mesa.

Municiar essa nova legião de gourmets et gourmands abriu um novo nicho de mercado não apenas para restaurantes, bistrôs de delicatessens, mas também para o segmento editorial. Há vários títulos que abordam a comida, sozinha ou misturada com História, Geografia, Sociologia e biografias. Afinal, quando as receitas vêm acompanhadas de um contexto, o papo da mesa do restaurante pode ser muito mais proveitoso.

Entre esses lançamentos, alguns são deliciosos e honestos, mas outros cheiram a oportunismo como um falso restaurante japonês. Penso que um exemplo desse caso é o primeiro livro da editora-chefe da revista Gourmet, Ruth Reichl: A parte mais tenra: um saboroso aprendizado de vida (Objetiva, 2004, 307 p.). A autora ficou famosa com outro título na mesma linha, Conforte-me com maçãs.

A parte mais tenra mistura a história da vida da autora com receitas que marcaram momentos importantes da sua trajetória. Ela mesma avisa, porém, que nem todos os fatos representam a verdade. A verdade é preterida pela intenção de se contar uma boa história. E a história é realmente boa, assim como as receitas descritas. Mas a relevância dessas receitas só se justifica pelo seu gancho com momentos de vida. Como esses momentos podem ser ficcionais, os pratos escolhidos perdem um pouco sua razão de ser nesse contexto.

As receitas são primorosas, mas só para iniciados. De ingredientes difíceis de encontrar a formas de preparo que levam 4 dias, praticamente todas elas exigem um conhecimento mais profundo de culinária - ou tempo para aprender e experimentar. Mesmo um singelo bolo de chocolate transformou-se em um desafio de confeiteiro!

No geral, parece que as receitas foram escolhidas a dedo para impressionar. Outras, que são mencionadas nas situações vividas pela autora, talvez fossem mais relevantes. Mas, considerando que o contexto é em parte ficcional, vem aquela sensação de oportunismo. Até porque o texto tem um certo ar de auto-ajuda. Meio disfarçada, mas ainda perceptível, como aquele sabor que a gente não gosta e mesmo assim consegue sentir misturado aos outros ingredientes do prato.

Apesar desses aspectos, o livro é uma boa diversão. Também são interessantes as receitas que a autora experimentou durante suas viagens por Montreal, Itália, Túnis. No mais, para quem quiser se aventurar, o desafio culinário é grande, mas o prazer deve ser compensador. Tanto para os sentidos, ao ter a oportunidade de degustar um dos pratos descritos, quanto para o ego. Afinal, o repertório para as conversas em volta da mesa do mais novo restaurante da cidade estará garantido.

Para ir além





Adriana Baggio
Curitiba, 30/9/2004

 

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