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Quarta-feira, 6/10/2004
Em defesa dos cursos de Letras
Ana Elisa Ribeiro

Saber mais não ocupa espaço, embora dispenda tempo. É preciso, a certa altura da vida, selecionar caminhos e trilhar, da melhor forma possível, um percurso. Cada pessoa tem suas preferências e frustrações. E certamente a escola ajudou (ou atrapalhou), no mínimo, colaborou para que certas escolhas fossem feitas ou deixassem de o ser.

Mas a aprendizagem está em todos os lugares. Basta lembrar que não foi preciso freqüentar escola para aprender a falar, nem entrar em curso para operar videogame ou contratar instrutor para aulas de velocípede. Há as possibilidades oferecidas pela biologia (a forma do nosso corpo, assim como as possibilidades dele) e as dadas pela cultura, que embutem até mesmo valor e desvalor em uns conhecimentos e umas habilidades, às vezes correlatos.

Assim é que, na escola, bonito mesmo é saber matemática. Na cultura cartesiana, inteligente é quem sabe calcular; vir do menor para o maior, do mais fácil para o mais difícil. Para os behavioristas, há que treinar as pessoas e os animais que somos. Ao estímulo, uma resposta, predeterminada, claro, porque se não for aquela, há algo errado (com a pessoa, não com a instituição, por exemplo).

Nessa cultura de respostas únicas e de gabaritos precisos, sobram as pessoas que queriam gostar inadvertidamente de pintura, poesia, música (embora esta tenha as nuanças da matemática), escultura e afins. Aos "bons de história e português" sobra o limbo dos jornaizinhos de Grêmio estudantil, lidos pela minoria, amassados nas lixeiras do pátio ou servindo de piso de gaiola. Também esses jornais que oferecem, entre dez, nove páginas à discussão macro e micropolítica da vez e uma página aos poetas de plantão. Mas isso não dá camisa a ninguém, e nem medalha de honra ao mérito, como dão as olimpíadas de matemática.

Mas nem por isso se deve discriminar. E quem disse que não é bom saber matemática, física e química? Ao menos os rudimentos, já que são as cadeiras de nossa cultura escolar, separadinhas como prateleiras, como se não fossem todas conexas.

Muito me surpreende quando alguém, especialmente esclarecido ou metido a, me sai, em plena era dos estudos da complexidade e da mudança dos paradigmas mais estanques para outros mais dinâmicos e convincentes, pessoas em pleno uso das redes interconectadas em ambiente digital, usuárias de orkuts e outras ferramentas de conhecimento... mas muito me surpreende quando esses sujeitos, por vezes colunistas de revistas eletrônicas, me saem com estreitas visões funcionalistas das coisas e das pessoas e das possibilidades que coisas e pessoas, associadas, têm e oferecem.

Ao meu amigo médico, as aulas de Educação Artística não serviram para nada. Diz-me ele que, no entanto, tem a capacidade, aprendida culturalmente, de admirar um Matisse, que conheceu na escola e, mais tarde, mandou pôr em moldura para enfeitar a cabeceira da cama onde dorme. Também me diz ele que foi de suma importância saber escrever bem para, no mínimo, passar no vestibular.

Para meu amigo historiador, de quase nada serviram as aulas de Matemática, já que não faz parte de seu dia-a-dia profissional resolver equações ou pensar em limites e derivadas. Mas também disse-me ele que lida, no entanto, com uma micromatemática que o persegue no dia-a-dia doméstico, social, etc. Aquela continha do troco, da padaria, do supermercado, do caixa eletrônico.

A mim, para nada servem as aulas de Geografia, especialmente aquelas em que se decoravam nomes que nunca usei ou que serviam de intervalo entre as aulas de Português e as de Matemática (as maiores cargas horárias dos currículos escolares). Havia aulas em que o professor mandava abrir o livro, responder questões sobre Contestado ou sobre a seca no Nordeste, ou ainda algo sobre o Japão (em Belo Horizonte, onde quase não vemos orientais pelas ruas), e pronto, estava estudada a Geografia.

É com essa mesma pequenez do ensino de Histórias, Geografias e Matemáticas que se formou uma geração que pensa que esses conhecimentos são estanques e têm valores diferenciados. Não é preciso ser muito inteligente para perceber que todas essas "matérias" são escritas ou "ensinadas" em Português e que todas elas são dadas ao tratamento estatístico (matemático) e que a leitura de mapas, a percepção de entrelinhas ideológicas no tratamento da história e do passado, a análise dos sistemas químico-físicos e biológicos... que tudo isso é conectado e está em mim, em minha cultura.

Diante disso, basta incluir as outras "matérias" para repensar: a Literatura, enquanto "matéria" de escola, mesmo não sendo abordada como arte, pode o ser como fazer histórico. Foi em relação com o mundo geográfico ou histórico que cada escritor produziu sua obra. Mesmo sendo farmacêutico, médico, engenheiro... cada um deles foi capaz de, lindamente, atingir outras linguagens.

E se for abordada como arte, a literatura oferece as possibilidades, muito pessoais, da contemplação, do deslumbramento, do encantamento, da experiência estética (que pode faltar a certas pessoas). Se ela não servisse para nada (nessa pequeninha visão funcionalista), nenhum escritor teria sido preso, torturado, exilado ou calado porque disse ou deixou de dizer (mais inteligente ainda: quando disse fingindo que não dizia).

Há certos tipos de afasia ou problemas neurológicos que, alterando as possibilidades biológicas e cognitivas do corpo, não permitem que uma pessoa compreenda ironia, mentira, verdade ou metáforas. Se for este o caso, perdoa-se. Mas se não for, é mesmo certa falta de repertório.

Os desavisados ingênuos de plantão devem pensar que em uma faculdade de Comunicação Social só se aprende a ser repórter da Globo. Na mesma linha, as faculdades de História só discutem os fatos passados, as de Geografia só ensinam a ler mapas e as de Letras ficam o dia inteiro discutindo literatura.

Pois bem, mesmo sem conhecer muitas outras escolas de ensino superior (das boas e comprometidas), não sou besta de achar que os cursos oferecidos sejam tão estreitinhos e só formem pessoas estreitinhas (até porque a formação das pessoas não se dá apenas em bancos escolares). Não há só nerds cheios de espinhas nos cursos de Computação e nem apenas patricinhas de echarpe nas escolas de Psicologia. Assim como nem todo geógrafo é cheio de limites e fronteiras muito espremidinhos.

Os cursos de Letras são espaços onde se pensa a literatura em relação com muitas outras coisas, além de ser o lugar onde se repensam a língua materna, outras tantas línguas e onde se formam pessoas que vão educar nossos filhos. Nem toda estudante de letras é mal-amada e nem todas elas (e eles, diga-se de passagem!) são apaixonadas por literatura. Assim como, tenho certeza, nem todo estudante de qualquer curso é apaixonado pelo que faz.

Nas escolas, travamos contato com todo tipo de frustrado, e não apenas as pacatas professoras de literatices. Tenho certeza de já ter tido contato com uns apaixonados, de verdade, por suas matérias (incluindo a literatura). E a formação numa área como Letras, que permite a reflexão e a aprendizagem sistemática de línguas, abre um leque de possibilidades, tais como ensinar a redigir melhor em qualquer outra área, seja ela Matemática ou Geografia. (Muitos cursos oferecem cadeiras como Redação acadêmica, por exemplo, embora nem todos os alunos queiram cursá-las).

Lamento muito por quem não estudou em boa escola ou não teve a oportunidade de pensar complexamente, pensar hipertextualmente, de forma multimodal ou fazendo sinapses coordenadas e simultâneas. Tudo pode servir para tudo. Mas para quem pensa em série, se uma lâmpada não acende, as demais também estão condenadas.

Ana Elisa Ribeiro
Belo Horizonte, 6/10/2004

 

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