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Terça-feira, 5/10/2004
Um legado de dois mil anos
Luis Eduardo Matta

Uma das mais fascinantes e importantes descobertas arqueológicas do século XX aconteceu por uma grande obra do acaso. No começo de 1947, dois beduínos conduziam um rebanho de ovelhas e cabras perto de Qumran, na região do Mar Morto, quando uma delas, subitamente, desgarrou e afastou-se para as montanhas. A fim de capturá-la e trazê-la de volta, um dos pastores foi atrás dela e, no percurso, passou pela entrada de uma gruta. De brincadeira, apanhou uma pedrinha no chão e, ao atirá-la, atingiu um jarro de cerâmica que guardava, havia mais de dois mil anos, oculto nas sombras da gruta, sete grandes rolos de couro. Esses rolos são alguns dos itens que compõem os Pergaminhos do Mar Morto, manuscritos redigidos entre 200 a.C. e 70 d.C. - ano da destruição de Jerusalém por Tito - provavelmente pelos Essênios, uma seita judaica que teria influenciado decisivamente a doutrina cristã, através de rituais e costumes próprios, como a valorização do celibato, o batismo e a crença na imortalidade da alma.

A história dos Essênios é nebulosa e controvertida. Especula-se que eles tenham surgido de um descontentamento com os Hasmoneus (ou Macabeus), que tomaram o poder na Judéia após a expulsão dos Selêucidas sírios (gregos), empenhados num processo radical de helenização de toda a região. Além de não pertencerem à linhagem de David - e, por conseqüência não terem legitimidade para ocupar o trono de Israel - os Hasmoneus, antes decididos a resgatar a prática religiosa israelita, logo se tornaram adeptos do helenismo, o que motivou um grupo de sacerdotes a se afastar da sociedade judaica e se isolar na região de Qumran, em absoluta devoção a Deus, a fim de se preparar para a chegada do Messias.

Por quase dez anos - de 1947 a 1956 - foi empreendida uma profunda pesquisa arqueológica na região do Mar Morto, que resultou num saldo impressionante de quinze mil fragmentos de oitocentos documentos diferentes, além de dezenas de artefatos do mesmo período, como moedas e utensílios em cerâmica e pedra encontrados em onze cavernas e em diversas escavações. Os manuscritos propriamente ditos, a maioria escrita em pergaminhos de couro grosso, podem ser divididos em três categorias: os bíblicos, os relacionados à vida da comunidade essênia e os apócrifos - textos religiosos, que não foram incluídos na Bíblia judaica. Sua origem, no entanto, ainda está longe de alcançar o consenso absoluto. Recentemente, contrariando a crença comum que atribuiu a autoria aos Essênios, dois arqueólogos israelenses, ao cabo de dez anos de pesquisas, afirmaram que os pergaminhos teriam sido redigidos, na verdade, por sacerdotes de Jerusalém, que escolheram as cavernas de Qumran para escondê-los, durante a invasão dos exércitos romanos. Segundo eles, os Essênios que habitaram aquela área eram prósperos lavradores e não religiosos abnegados e devotados a Deus, como a História faz crer.

Controvérsias à parte, o fato é que desde o dia 20 de agosto uma seleção bastante representativa desse formidável acervo, pertencente à coleção da Israel Antiquities Authority, está em exibição na mostra Pergaminhos do Mar Morto: Um Legado para a Humanidade, em cartaz no Museu Histórico Nacional, no Rio de Janeiro. Dividida em três núcleos, a exposição conta com dez fragmentos de pergaminhos (livros do Gênesis, Êxodo, Levítico, Deuteronômio, Isaías, Salmos e Filactérios), sendo apenas três originais - os demais são cópias tratadas e envelhecidas com uma perfeição tamanha que um olhar desatento pode jurar que são autênticas. Há ainda dezenas de objetos da época, com destaque para um lindo jarro de cerâmica para pergaminhos, outro para armazenamento de alimentos ou água e dois lotes de moedas de prata e bronze em perfeito estado - algumas recém-descobertas - cunhadas pelos Hasmoneus ou pelos Romanos. Uma atração à parte é uma réplica da caverna onde foram encontrados os pergaminhos, montada no acesso ao terceiro e último núcleo da exposição. A mostra termina com cópias de duas bíblias modernas - a Complutense, publicada no século XVI, na Espanha, em três idiomas: hebraico, grego e latim; e a d'Almeida, a primeira tradução das escrituras para o português, efetuada no século XVII pelo padre João Ferreira de Almeida -, uma forma de mostrar a perenidade dos textos sagrados através dos séculos.

Uma vez terminada a mostra, o visitante - se, naturalmente, tiver tempo para tanto -, deve aproveitar para percorrer os corredores e salões que guardam o acervo permanente do museu, um dos mais ricos e importantes do país. Uma ótima sugestão é a galeria "Memória Do Estado Imperial", que guarda tesouros como um trono de Dom Pedro II e a pena com que a princesa Isabel assinou a Lei Áurea. O próprio conjunto arquitetônico do museu, uma estupenda fortaleza barroca do século XVII, encravado no coração da cidade do Rio, é por si só, uma atração e merece uma contemplação minuciosa e apaixonada. Um patrimônio, aliás, que deve ser visitado sempre.

Por que os vilões costumam ser mais interessantes

Um fenômeno curioso que ocorre nas telenovelas brasileiras é a admiração que uma expressiva parcela do público nutre pelos vilões, legando aos protagonistas - por quem, teoricamente, deveriam torcer acima de tudo - um interesse quase que meramente protocolar. O caso mais emblemático talvez seja o de Vale Tudo, novela exibida pela Rede Globo, em 1988, que consagrou a vilã, Odete Roitman, uma atuação marcante de Beatriz Segall, enquanto a heroína, interpretada por Regina Duarte parece ter caído numa espécie de limbo, a ponto de quase nunca ser lembrada com o mesmo vigor. Seu nome? Raquel Acioly.

Fato similar ocorreu em Que Rei Sou Eu? -, que foi ao ar no ano seguinte pela mesma emissora -, uma ótima história ambientada em Avilan, um reino europeu fictício do século XVIII. Valentine, a rainha má e frívola imortalizada por Tereza Rachel e seus inescrupulosos conselheiros obscureceram totalmente o casal de protagonistas, vividos por Edson Celulari e Giulia Gam, que lutava para derrubar a monarquia corrupta e instaurar um novo regime, voltado para as necessidades do povo. A galeria de antagonistas célebres na teledramaturgia verde-amarela é vasta e inclui ainda, entre outros, o cirurgião cafajeste Felipe Barreto (Antônio Fagundes), de O Dono do Mundo, a maquiavélica Filomena Ferreto (Aracy Balabanian) de A Próxima Vítima, a espalhafatosa megera Branca (Suzana Vieira) de Por Amor e até o perverso Leôncio (Rubens de Falco), do insuperável sucesso A Escrava Isaura.

Essa verdadeira preferência nacional tem a sua razão de ser. A composição de uma peça de ficção voltada, primordialmente, para o público - seja ela um texto literário, um filme ou uma telenovela - é uma tarefa muito mais elaborada e complexa do que muitos supõem e não somente no que tange ao trabalho físico, particularmente pesado no caso específico de um autor de novelas. O processo intelectual de criação é muito delicado e precisa necessariamente observar determinadas regras básicas, como a de compor personagens com personalidade e comportamento muito bem definidos a fim de dar ao leitor/espectador uma noção clara de quem é o bem e quem é o mal, uma oposição clássica imprescindível num folhetim que se preze. O mocinho deve, necessariamente, ser bondoso, abnegado, altruísta, afetuoso, generoso, piedoso e romântico, não pode jamais sentir inveja, desejar intimamente a ruína de alguém, se acovardar ou ter opiniões politicamente incorretas. Uma pessoa assim, com tantas qualidades reunidas e tão despida de sentimentos socialmente considerados "baixos", são raríssimas na face da Terra - não digo inexistentes, pois não conheço tão bem os mais de seis bilhões de habitantes do planeta para fazer uma afirmação desta monta.

Um vilão, por sua vez, não requer tantos requisitos para ganhar vida na ficção. Ele precisa, basicamente, fazer maldades que prejudiquem o mocinho. Não há qualquer restrição em relação ao seu caráter, aos seus hábitos, atitudes e sentimentos. Ao mesmo tempo, não há nenhuma exigência de que ele seja mau o tempo todo. Isso dá ao autor uma liberdade muito maior para compor um personagem múltiplo, que aglutine um rosário de características que seriam impensáveis num protagonista. Um vilão bem construído, sem exageros, pode se tornar, portanto, muito mais próximo da condição humana real - isso se, naturalmente, ele não for uma caricatura do mal. Também pesa o fato de, na dramaturgia, os artistas selecionados para esses papéis serem, muitas vezes, profissionais de primeira linha, que dão um brilho ainda maior a um personagem já atraente.

Quem me conhece sabe que eu sempre gostei muito de novelas. Nos últimos anos, infelizmente, perdi o hábito de acompanhá-las com regularidade, permitindo-me, quando muito, assistir a um capítulo ou outro de vez em quando. É o que tenho feito, sempre que possível, com a trinca de tramas no ar atualmente no horário nobre da rede Globo e que não desmentem a tese acima. Por tudo o que vi até agora (que é pouco, não nego), os personagens Justino (Mauro Mendonça), Lucrécia Borges (Eva Wilma) e Nazaré (Renata Sorrah), vêm, sistematicamente, roubando a cena nas suas respectivas novelas Cabocla, Começar de Novo e Senhora do Destino. A ponto de há poucos dias, eu ter sintonizado a trama das sete apenas para assistir às maquinações diabólicas de Lucrécia e seu aliado, o prefeito da fictícia Ouro Negro, Ademar (Carlos Vereza).

O grande desafio para um autor de folhetins talvez seja o de construir mocinhos que, embora se enquadrem nos limites que o formato impõe, ostentem características que o aproximem um pouco da condição humana real, essencialmente instável e contraditória, mesmo nas mais cândidas criaturas. Não para reproduzir mais fielmente a realidade, pois essa não deve ser uma obrigação da ficção, mas para impedir que um vilão habilidoso o ofusque. Afinal, não é o bem que deve triunfar no fim?

Luis Eduardo Matta
Rio de Janeiro, 5/10/2004

 

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