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Quarta-feira, 13/10/2004
Os benefícios da dúvida
Daniela Sandler

O segundo debate entre os candidatos à presidência dos Estados Unidos, na sexta-feira passada, repetiu os temas do primeiro encontro e condensou novamente os impasses da campanha de John Kerry e George W. Bush. Kerry e Bush gravitaram em torno da guerra no Iraque, sem, no entanto, acrescentar muito para além da troca de acusações e defesas que vem se tornando a ladainha dos dois candidatos. Bush repete o bordão de que Kerry é indeciso e muda muito de opinião - flip-flopper é o xingamento de ordem. Kerry revida acusando Bush de ter entrado em guerra sem um plano para conquistar a paz. Enquanto os candidatos se entregam, com maior ou menor sucesso, ao argumento vicioso, outros tópicos cruciais escorrem pelas frestas, como saúde, previdência social, recessão econômica, reforma tributária e evasão fiscal, desarmamento e meio-ambiente - para citar apenas alguns.

A perspectiva de Bush, como ele mesmo coloca, é simples: a questão mais importante para os Estados Unidos é se defender de ataques terroristas, e todo o resto é secundário. O "Onze de Setembro", segundo ele, mudou o mundo para sempre. O que antes era uma preocupação de inteligência defensiva agora requer ações militares de ataque. Daí a iniciativa de guerra no Iraque ter rapidamente roubado o foco da caçada à Al Qaeda no Afeganistão. A atitude beligerante de Bush foi acolhida pela população americana graças ao impacto dos aviões suicidas de Osama bin Laden. O maior ataque inimigo em terra americana revolveu as entranhas patrióticas de seu povo, surpreendido pela própria vulnerabilidade e pelo tremendo antiamericanismo no resto do mundo. O misto de medo e orgulho ferido fez a retórica de Bush soar como bom senso, e o ataque ao Iraque entrou para o imaginário popular como parte da necessária guerra ao terror.

Não importa que críticos dentro e fora do país tivessem, mesmo à época do início da guerra, apontado a falta de conexão direta entre Saddam Hussein e Osama bin Laden. Também não importa a ausência de armas de destruição em massa no Iraque, pretexto da invasão armada. Os oponentes de Bush agora insistem nesses pontos para tentar evitar a reeleição do presidente, mas erram no alvo: para boa parte dos norte-americanos, a guerra se justifica pela mera hipótese de perigo. Bush tem um talento imenso para reassegurar seu povo e ganhar sua confiança, falando a língua simples do nacionalismo e dos chavões - "luta pela liberdade", "bastião radiante da democracia." É como um pai que toma atitudes drásticas sem revelar suas razões, dizendo aos filhos apenas que "é para o seu bem". Os bastidores da guerra são coisa secreta, para gente especializada e de alto escalão - essa é a mensagem que Bush manda ao desdenhar das críticas de Kerry com respostas do gênero "Você não sabe como é duro nosso trabalho na Casa Branca", sem se preocupar em explicar como é esse trabalho.

Além disso, a guerra tem efeito catártico. A performance dos soldados americanos, suas proezas de força e tecnologia, afirmam o poderio norte-americano, botando banca no mundo e mostrando quem é que manda. O número de soldados mortos sobe, mas a raiva não se dirige a Bush, e sim aos terroristas do Iraque - alimentando ainda mais a vontade de guerrear. Os soldados entoam o refrão de lutar pela pátria, e em casa seus compatriotas hasteiam bandeiras como gestos de vitória, com a satisfação de quem torce por um time de esporte. O "Onze de Setembro" feriu a nação, mas pouco tempo foi dedicado ao luto: nada como agredir alguém para esquecer a própria dor.

As duas Américas

O problema é que a dor americana é maior que o ataque da Al Qaeda. A destruição foi de fato horrenda, e sem dúvida a ameaça terrorista é real. Mas o país sofre de outros problemas, disfarçados talvez na época de prosperidade econômica de Bill Clinton, e trazidos novamente à tona na recessão dos últimos quatro anos: contrastes sociais, ou o que o senador e candidato à vice-presidência John Edwards chama de "duas Américas." A falta de uma rede de segurança social pública, que ofereça serviços médicos e aposentadoria, faz com que a maioria dos americanos tenha de recorrer a empresas privadas com custos cada vez maiores. Para quem ganha muito dinheiro - no mercado financeiro, nas corporações cada vez maiores, em entretenimento - isso não é problema. Mas para trabalhadores, pequenos agricultores ou desempregados, o custo é proibitivo. O critério para receber ajuda pública (o chamado "Medicare") é tão rígido que exclui boa parte das pessoas que vivem na pobreza.

As disparidades sociais se estendem à educação superior, ao acesso a habitação e a oportunidades de trabalho. Enquanto cidades como Nova York e Los Angeles concentram investimentos e riqueza, regiões inteiras sofrem com estagnação ou depressão econômica, do Deep South a Upstate New York. A indústria engorda os salários no topo dos conglomerados de mídia, de fármacos, de agribusiness, enquanto o trabalho pesado é feito a troco de quase nada por imigrantes ilegais ou em países em desenvolvimento. Desemprego, recessão e alto custo de vida afetaram não só as classes baixas, como também os setores médios.

As contradições não param nos contrastes econômicos. Os Estados Unidos vivem numa esquizofrenia ética e moral. Os conservadores republicanos, representados pelo governo Bush, atacam raivosamente o direito ao aborto, o casamento gay ou a pesquisa científica com células-tronco (técnica ainda experimental que pode usar células embrionárias para tratar males hoje incuráveis como câncer ou lesões neurológicas). Os republicanos justificam esse ataque citando valores religiosos como a defesa da vida. Ao mesmo tempo, defendem a pena de morte e o porte de armas, cujo poder destrutivo e conflito moral representam a destruição (e não a defesa) da vida. A ideologia conservadora se baseia na autonomia individual e na mínima intervenção do governo; no entanto, a liberdade de casar com alguém do mesmo sexo ou eliminar uma gravidez indesejada é tolhida. O "bastião da democracia e da liberdade" vem sendo sufocado por medidas repressivas e invasivas de segurança desde que o "Patriot Act" foi promulgado depois do Onze de Setembro. Para dar uma idéia, um artista plástico foi preso e teve suas obras e materiais confiscados sob a acusação sumária de suspeita de terrorismo. O artista desenvolvia seu trabalho com equipamentos de laboratório, mas daí a prendê-lo sob a acusação de desenvolver armas biológicas é um salto imenso que denota o clima atual do país.

Subterfúgio

Falar de guerra distrai desses assuntos. O primeiro debate, é verdade, foi dedicado a relações internacionais - mas é triste que elas tenham sido reduzidas ao conflito no Iraque e ao papel dos Estados Unidos como polícia do mundo (que tal redefinir o papel do país como força de desenvolvimento, de ajuda humanitária, financeira ou de conquista da paz?). Já o segundo debate foi aberto ao público, livre para perguntar sobre qualquer tema - e não só a maioria das perguntas se concentrou na guerra, como as declarações dos candidatos voltaram ao assunto mesmo quando a questão era diversa. O monopólio do tema extrapola os debates. Não é a primeira vez que governantes usam guerra para desviar a atenção de problemas nacionais internos e congregar a opinião pública em assentimento e aprovação. Essa crítica foi feita em relação à guerra nas Malvinas de Margaret Thatcher, ou mesmo à intervenção de Bill Clinton em Kosovo (na época do escândalo com Monica Lewinski).

Que não se pense, no entanto, que Bush conta com apoio unânime e irrestrito da nação. Essa visão um tanto ingênua tem alimentado os sentimentos antiamericanos no Brasil e na Europa. É preciso repetir que há enorme parcela da população que não apenas se opõe às políticas de Bush, como se engaja concretamente em movimentos e demonstrações de oposição. A eleição promete ser disputada de perto, voto a voto, como em 2000, dando sentido especial à afirmação de Edwards sobre as duas Américas: uma nação profundamente dividida em sua orientação política e ideológica, em que o próximo presidente terá de enfrentar oposição e descontentamento fortes, não importa quem vença.

Realismo em cheque

O desafio de Kerry para conquistar o eleitorado indeciso - que pode definir a eleição - será transformar seu discurso elaborado e complexo em termos simples e bruscos como os do atual presidente. Os argumentos de Kerry são nuançados e sutis demais para o ritmo rápido e superficial dos debates; seu vocabulário e exemplos soam complicados. Por exemplo, Kerry chamou o programa de qualidade do ar de Bush de "Orwelliano" - George Orwell não é exatamente uma referência na boca do povo. Al Gore enfrentou o mesmo problema diante de Bush em 2000 e perdeu. O eleitorado o considerava distante e elitista demais, enquanto Bush - com sua gramática deficiente, pausas constrangedoras e sentenças de três palavras - revelou falar a linguagem das massas.

Por fim, o sucesso de Bush com certa parcela da população se apóia no elogio da certeza: tomar decisões sem hesitar, firmar pé numa posição mesmo quando as circunstâncias se revelam diferentes do imaginado. A idéia é que é melhor agir com determinação, mesmo estando enganado, do que mudar de opinião e revelar incerteza. O ponto fraco de Kerry, cujas votações no Senado revelam mudança de posição e contrastam com suas declarações atuais, é justamente a inconsistência. No entanto, as premissas duvidosas que levaram à guerra no Iraque, e seus atuais reveses, põem em cheque a obstinação intransigente do governo americano e sua inflexibilidade diante dos fatos. Mais que isso: o clima de perseguição e caça-às-bruxas, em que críticas ao governo são interpretadas como antipatrióticas, é um sinal sombrio de autoritarismo e repressão. Na terra que cultua, teoricamente, a liberdade de expressão, talvez seja hora de reconhecer os benefícios da dúvida.

Daniela Sandler
Riverside, 13/10/2004

 

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