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Sexta-feira, 22/10/2004
Eles – os artistas medíocres
Julio Daio Borges

Quase que por costume, você tem me visto aqui a falar de pseudojornalistas e de pretensos escritores. É natural: como um hábito, aprendi a distinguir um colunista com possibilidades de um verdadeiro embuste ou até de uma vocação insinuada mas não plena ainda; e aprendi, creio, a sentir uma voz literária de longe - de modo que algumas páginas já me bastam para apontar um potencial ou rechaçar um calhamaço logo de cara. Não imagino que seja um dom; é um fato que vem com a prática e cada editor tende a desenvolver essa habilidade mais e mais, dentro da sua especialidade.

Mas minha idéia, hoje, não é abordar os escrevinhadores de ocasião, mas sim falar de uma categoria mais ampla - tão ampla que engloba praticamente todos os artistas que encontramos na chamada "vida real", a categoria dos artistas que não saíram da mediocridade. Esta reflexão me ocorreu por causa de uma apresentação amadora a que compareci e que era toda alicerçada nesse tipo de pessoa. Não vou, obviamente, citar nomes.

Em princípio, direi que não tenho nada contra artistas amadores. Todos são, de início, amadores; ninguém nasce profissional. Então reforço que respeito e até encorajo artistas mais jovens que ainda não tiveram direito às luzes da ribalta. Muitas vezes, esses se revelam, ao menos, mais vigorosos que seus antecessores consagrados. A minha crítica se dirige aos acomodados, àqueles que não ultrapassaram uma certa faixa - seja por conformismo, seja por mera falta de talento ou sorte.

Oh, como são numerosos esses tais! Desde o vendedor de poesia na porta do cinema até o violonista animador de bar de shopping, existe toda uma gama de incapacitados para as artes. Vale frisar que considero a arte "um direito de todos" (como é moda hoje, cidadão). Senão, como se opor à aprendizagem de instrumentos musicais, ao frenesi dos atuais fotógrafos digitais, à fúria dos caraoquês domésticos e comerciais? Não há como negar ao sujeito a chance de se expressar, seja de qual jeito for - até porque, geralmente, ele não tem ambições que transcendam, por exemplo, seu círculo íntimo ou suas relações pessoais. Não é esse, mais uma vez, o meu alvo.

E eu não quero ser cruel e condenar peremptoriamente o artista que pertence à esfera da mediocridade. Tenho pena dele. Primeiro, porque vai passar por privações materiais à toa - já que não vai, nunca, se consagrar. Depois, porque é eminentemente um chato, coitado. Em terceiro, porque, na maioria dos casos, não tem nem consciência de suas naturais limitações - embora seja um acomodado -, fazendo sofrer assim, inconscientemente, aqueles desafortunados ao seu redor. Portanto, quando me deparo com um exemplo prático e encaro aquele ar de "inocência despreocupada", não sei o que é melhor: se desencorajar o tipo desde já, sem nenhuma apelação; ou se mantê-lo nessa ilusão confortável, dar de ombros e ir embora (afinal, "vai ser feliz - e já é - mesmo na desgraça"...).

Pobres almas! Não me incomodam. A não ser quando me fazem perder tempo ou quando me incitam mentalmente a enviar ondas de "correções" cerebrais e "comentários" (edificantes) que eles nunca captam. Provavelmente, os artistas habitantes do reino da mediocridade são inaptos para o aprendizado. Alguns se esmeram em matéria de técnica e tornam-se grandes ases - mas puramente maquinais e sem nenhuma arte. Tive professores que alcançaram níveis, para mim, inalcançáveis, de complexidade - mas eram estéreis e sempre ensaiavam uma "estréia" indefinidamente postergada. Talvez a mediocridade em termos de artista seja, no fundo, uma mistura de medo e de covardia pessoal; um impulso sempre adiado para o futuro - que, jamais realizado, vai até o fim da vida bojudo de possibilidades. Como é livre quem nunca fez nada!

E a dúvida é natural em todo mundo, em determinada fase: "Serei eu (também) uma mediocridade artística ou uma artística mediocridade?". É melhor acreditar que não (é melhor acreditar que nenhuma das duas hipóteses). Pois, pior que o artista condenado à aurea mediocritas, é o artista que se conforma com a sua sorte - de palhaço sem graça de bufê infantil; de pianista de praça de alimentação; de piadista e de "musicista" de cursinho; de fazedor de jingles para políticos; e de promotor de outras mediocridades alheias (esse é o "artista" mais danoso).

Sei que todo mundo vai pensar nos falsos artistas, espalhados por aí aos montes. Seria fácil descer-lhes o sarrafo, são mediocridades expostas e não raro televisivas, de modo que sobra munição e argumentação para atacá-las. Falta-me porém ânimo para assunto tão batido e sem novidades. Todo mundo, também, já sabe quem são as "falsidades" do mundo artístico - mesmo as mais sutis (que, se não são hoje, serão amanhã desmascaradas). Enfim. A meu ver, e isso me interessa aqui, o artista medíocre dista do falso artista por um simples e crucial motivo: falta-lhe o convencimento, o vigor - se preferirem, a auto-estima - e, sobretudo, a cara-de-pau. O medíocre é humilde, enquanto que o falso é altivo e orgulhoso (embora seja a mesma droga, ou até uma droga mais perigosa, pois inflada e dada a seduzir os incautos...). O medíocre não polui, enquanto que o falso sufoca - e, às vezes, mata.

Outra subdivisão ou variante é a do medíocre de situação, que, antes de sê-lo, estacou. Outro dia assistia à entrevista de alguém que admirava mas que trocou a antiga posição por uma de clown, em busca de conforto material. Então, estreitou os seus horizontes e jogou fora uma porção de projetos para se confinar numa atividade lucrativa, porém mesquinha em termos de realização artística. Diria que esse tipo está medíocre, mas sua própria função - como que escapando-lhe ao controle - o trai e revela que ele não é medíocre, afinal. É uma forma de derrotismo, na verdade; ou de dizer, como muitos dizem, que "foi cuidar da vida". Muitos (outros) deveriam cuidar mesmo - e desistir desse negócio de arte. Mas outros (outros ainda) não deveriam entregar assim os pontos; ou deveriam até entregar parcialmente, num país como o Brasil - empenhando ainda que uma pequena parte de seu talento em coisas maiores...

"Mas, no fim das contas, quem é você para tecer essas considerações infundadas, baseadas, unica e exclusivamente, na experiência pessoal?" - o leitor pode justamente perguntar. E eu respondo: porque como crítico, mais do que como artista frustrado, tenho o direito de saber o caminho - embora não tenha como conduzir o carro. Sou, na metáfora de Sócrates, a "parteira" estéril, mas que sabe trazer à luz uma boa idéia. E quem disse que Mencken não tinha razão quando viu, na atividade crítica, um certo pendor artístico? Porque meter o pau, todo mundo mete, mas poucos de maneira olímpica, com estilo e classe. Os medíocres que me perdoem, mas um pouco de gênio - mesmo que do mal - é fundamental.

Julio Daio Borges
São Paulo, 22/10/2004

 

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