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Terça-feira, 26/10/2004
Dorival Caymmi, por Cláudio Nucci
Fabio Silvestre Cardoso

Recentemente, dois dos principais estudiosos da música popular brasileira têm se voltado para a análise da canção. De um lado, o crítico musical José Ramos Tinhorão decreta o fim do gênero. Em entrevista a Pedro Alexandre Sanches, na Folha de S.Paulo, ele afirma que "hoje é tudo coletivo, com recursos eletro-eletrônicos". E ele continua: "Acabou essa canção que nasce contemporânea do individualismo burguês, feita para você cantar e outras pessoas ouvirem se sentindo representadas na letra". Na outra ponta, o professor da USP Luiz Tatit acaba de lançar O século da canção (Ateliê Editorial, 2004), obra que defende a canção como elemento genuíno da identidade cultural brasileira. Em certa medida, as duas "teses" se completam, pois ao mesmo tempo em que não há uma profusão, como no passado, de grandes compositores e intérpretes, o interesse do público está voltado para outras manifestações, como a música eletrônica. Assim, para os amantes da canção, restam as homenagens, como Ao mestre, com carinho (Lua Discos, 2004), álbum que traz a interpretação de Cláudio Nucci das canções de Dorival Caymmi.

Ao longo de 14 faixas, o disco traça um panorama da obra de Dorival Caymmi, desde as canções praieiras até os sambas sacudidos. A interpretação, no entanto, ganha colorido a partir dos novos contornos que Cláudio Nucci dá às canções de Caymmi. E um deles, que se nota logo de início, é o acompanhamento folk, com violões de cordas de aço, executados pelo próprio Nucci. Em "Só louco", por exemplo, é a batida do violão que dá o toque original entre os versos. A seguir, "O Dengo", o samba é tocado e entoado privilegiando o jingado, que se faz presente tanto na voz como na parte instrumental, como no trecho: "Quando se diz que no falar tem dengo/ tem dengo, tem dengo/ tem dengo, tem [...] É dengo, é dengo/ É dengo, meu bem/ É dengo que a nega tem". O mesmo ocorre com "A vizinha do lado". Os instrumentos - contra-baixo, percussão e clarineta - conversam, e não apenas acompanham, com Cláudio Nucci, à medida em que este canta: "A vizinha quando passa/ com seu vestido grená/ todo mundo diz que é boa/ mas como a vizinha não há". Numa sintonia fina, a percussão entra no refrão "Ela mexe com as cadeiras (para cá)/ Ela mexe com as cadeiras (para lá)".

A homenagem fica verossímil em "O bem do mar", faixa curta, mas que Nucci canta com uma malemolência caymmiana, com uma batida leve e num ritmo que sublinha a voz do intérprete. Na também breve "Horas", o mesmo acontece, muito embora o violão dedilhado se faça mais presente. E, embora os melhores perfumes estejam nos menores frascos, segundo preza a sabedoria popular, a melhor versão é uma das mais longas, "Das Rosas". Nela, estão concentradas todos os elementos do disco, como a diversidade instrumental (acordeom, cordas, percussão, violão de aço), assim como o lirismo e a suavidade do canto de Cláudio Nucci dá à canção.

Seria impossível interpretar ou homenagear Dorival Caymmi sem fazer referências aos símbolos e ao folclore que o envolve. Soaria não apenas ruim, como também falso. É o ouvinte percebe essas referências em "Cala a boca, menino". A letra possui um regionalismo que necessita ser posto em evidência, o que é feito graças ao ritmo imposto à canção. O folclore e o misticismo estão presentes em "Quem vem pra beira do mar". Nesse caso, no entanto, Cláudio Nucci faz a releitura mais sem "novidade" de todo o disco, desejando, talvez, que a letra fale por si só.

Em "Maracangalha", novamente os instrumentos são coadjuvantes participativos no suporte à interpretação de Cláudio Nucci. Trombone, percussão e violão de sete cordas dão um contraponto interessante à voz do cantor. Ao final, a canção alcança um tom mais alto, como conseqüência natural de um ritmo que dificilmente Dorival Caymmi cantaria. Esse ritmo é quebrado na canção seguinte, "João Valentão", que tem uma levada mais tranqüila e, por extensão, mais afeita ao estilo do homenageado. Afora isso, fica clara a ênfase que o cantor dá às aliterações, como a que segue "João Valentão é brigão/ pra dar bofetão/ nem presta atenção/ a todos João intimida/ faz coisas que até Deus duvida". Ao realçar com esmero as rimas mais simples, Cláudio Nucci mostra o tamanho de sua admiração por Dorival Caymmi, que já é denunciada desde o título: "Ao mestre, com carinho".

Cabe ressaltar, porém, que a homenagem de Cláudio Nucci não traz apenas admiração de um intérprete para um grande compositor. Para além do tributo, o álbum está recheado de variações que, se não tornam as composições mais belas, mostram a apreciação do músico por um gênero que se consolida tanto em verso e prosa, a canção.

Diálogos Impertinentes

São Paulo, 16 de outubro de 2004. Durante um passeio despretensioso pelas ruas da Vila Buarque, mais precisamente entre a Santa Casa de Misericórdia e a rua Maria Antônia, este colunista encontrou o supracitado jornalista e crítico musical José Ramos Tinhorão. O local? A livraria "Metido a Sebo", cujo proprietário, "seu" Marciano, mantém estreitos laços de amizade com o jornalista. O encontro foi seguido por uma animada conversa, sem tom professoral ou áspero, em que aprendi e ouvi como em poucas ocasiões.

Ao contrário do que se pode imaginar, Tinhorão não é a cobra que é cantada por Elis Regina em "O Brasil não conhece o Brasil" (de autoria de Aldir Blanc). Não se deve duvidar de seu rigor analítico tampouco de sua afeição pela música brasileira - quem ouve o crítico falar de Cartola e Wilson Batista, por exemplo, logo quer comprar os discos para ter a mesma sensação prazerosa que ele descreve. Assim, antes de ser o demolidor da Bossa Nova e do Tropicalismo, Tinhorão precisa ser lido (e entendido) como um amante da música brasileira, mas que tem critérios muito elevados.

Para ir além


Fabio Silvestre Cardoso
São Paulo, 26/10/2004

 

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