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Quarta-feira, 3/11/2004
A primeira vez de uma leitora
Ana Elisa Ribeiro

Disseram que eu precisava usar óculos. Naquela época eu não tinha nem 8 anos de idade. Achei ruim carregar para sempre umas lupas mal-ajambradas no cume do nariz. Mas fazer o quê? A despeito dessa sina, foi interessante e inesquecível quando olhei pra uma lâmpada na rua, à noite, e descobri que não era apenas um bolo difuso de luz. Era uma cápsula que guardava um dispositivo redondo de luz intensa e precisa.

Dessas primeiras vezes, além da emocionante luz do poste, também me lembro de quando vi um homem nu, de quando menti pros meus pais e de quando tomei pisco. Lembro-me, com recência, de quando me ofereceram droga pela primeira vez e de quando tomei meu primeiro porre. Pronto-socorro, beijo, parto, castigo e carteira de habilitação: tudo ficou na memória, embora com umas nuances de embaçamento.

Mas há lembraças que não tenho e que lamento por isso. Uma delas é que não sei qual foi minha primeira reação ao beber uns goles de Coca-cola. A segunda é que não sei qual foi o primeiro livro que toquei e li.

Devia ser pequena, pequeníssima, talvez. Em minha casa e na de meus avós isso não era artigo de luxo, nem apenas ornamentava paredes de sala. Era objeto de manipular, consultar, procurar, saber. Então acho que livros jamais me causaram impressão. Mas bem que eu queria saber qual foi o primeiro que caiu em minhas mãos.

Ainda esta semana, morri de inveja de alguém que me disse qual havia sido sua primeira leitura. Causou-me arrepio pensar nisso. Não sei se li um clássico ou um caça-leitor sem muita graça, mas devia ter guardado na memória essa experiência que me povoa até hoje.

O que sei é que fiz o percurso de muita gente da minha geração: infantis, Coleção Vaga-Lume, Para gostar de ler e o que mais me caísse nas mãos. Então qual é a importância de um Harry Potter? Talvez seja essa mesma que tinha um Escaravelho do Diabo ou um Mistério do Cinco Estrelas: persuadir com charme.

E afinal: para quê discutir gosto? Para vender polêmica barata? Ah, devia estar lendo qualquer coisa de boa ou de nova.

A cada segundo estamos tendo uma experiência profundamente nova. No entanto, estamos preocupados com o trânsito, mais do que com os cheiros. Daí que, dessas experiências instantâneas, algumas são insossas, outras têm potenciais que não se realizam, umas tantas são introdução a coisas que devem persistir, consolidar, ser. Assim é que o primeiro livro me deve ter batido e assim é que não bate em tantas pessoas.

Estive lendo sobre projetos de políticas públicas para o livro e a leitura e, ao cabo de tudo, me veio à mente que ler não é o problema, nem a solução. Veio-me que ler é um bom negócio, porque, ao final das contas, todo o aumento do meu repertório e da minha exígua conta bancária deu-se a partir de coisas que aprendi lendo. E mesmo os jacarés que dizem que não gostam de ler, lêem o que sabem, aprendem e fazem. Porque todas as matérias e áreas do conhecimento, no Brasil, são escritas em português. Exceto o inglês do Tio Sam.

A cidade do Rio de Janeiro vai sediar, entre os dias 8 e 11 de novembro, na Casa de Rui Barbosa, o I Seminário Internacional sobre Livro e História Editorial, e estarão lá pesquisadores e editores dos quatro cantos do país e de alguns cantos do mundo. Inclui-se na programação a palestra em francês, com tradução simultânea, de Jean Hébrard. E quem sabe disso? E quem quer estar lá? E quem quer casar com a dona Baratinha? E quem matou Lineu?

Eu estarei lá, pra falar de livro e Internet e pra repensar umas coisas. Curioso é que com essa onda digital que engoliu o mundo, as histórias, teorias e produções do impresso ganharam novo fôlego. Alavancas. Continua aí o velho fetiche dos escritores com o livro de papel. Assim como o clichê da cinta-liga.

Ao pensar o digital, repensa-se o impresso, numa demonstração divertida de como tirar um sistema estável, próximo da morte, do equilíbrio contraproducente. E assim é com as pessoas. Nunca há níveis seguros de consumo dessas substâncias.

Ana Elisa Ribeiro
Belo Horizonte, 3/11/2004

 

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