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Quinta-feira, 4/11/2004
De Lobisomens e Faróis
Ricardo de Mattos

"Imagine o grau de seu horror quando (despreparado como estava para uma semelhante cena) viu, à medida que caminhava para o túmulo, não um lobo, mas sua mulher, de camisola, agachada sob quatro patas junto ao túmulo de minha irmã. Estava demasiado empenhada em arrancar a dentadas grandes bocados de carne e a devorá-los com a avidez de um lobo para notar nossa presença."

Este foi o último ano de existência da minha livraria favorita na cidade. Era a única em que eu podia encontrar lançamentos quase simultâneos aos noticiados em jornais e revistas. Não sem um sentimento de orfandade, aproveitei alguns instantes de folga para visitar as duas opções restantes. Uma começou pequena, tomou vulto, pretendeu-se megastore, mas já encaminha-se ao ocaso. Inclusive, apela ao sebo, que se em outras ocasiões poderia significar ampliação das atividades e oferecimento de novos serviços ao cliente, agora é uma alternativa a mais para captação de recursos. Assim como a redução gritante dos preços, levando-me a adquirir de chofre A Serviço Del-Rey, de Autran Dourado. Logo estará vendendo doces. A outra, a provável substituta, começou grande e chamativa. Por enquanto, parece encontrar sustentação, mas o mercado livreiro é fragilíssimo. O exagerado número de vendedores é que servirá de indicador de seu progresso ou retrocesso. Durante anos, na livraria anterior, só trabalharam a dona e uma auxiliar. Embora seja adepto do comercio virtual, o proveito maior advém da visita às lojas, do exame dos livros expostos na vitrine, da consulta à ordem alfabética nas prateleiras.

Foi n'esta espécie de reconhecimento do novo ambiente que tive a felicidade de encontrar o livro de contos Homens, Lobos e Lobisomens - As Histórias Mais Fascinantes, trazendo textos de Alexandre Dumas, Edith Nesbit, Walter Scott, Saki e outros. A esclarecedora introdução é do organizador Edson Bini, seguida de excertos sobre licantropia da autoria de Collin de Plancy, folclorista francês do século XIX. Apesar de tangenciar o ocultismo, Bini raciocina com acerto: "Mas por que o ser humano disfarça-se, traveste-se, transforma-se? Para que possa trazer à tona e manifestar esse lado sombrio e obscuro de sua alma, capacitando-se a fazer tudo que com sua persona (a máscara exigida para a convivência social regulada pela moral e a lei) está impedido de fazer".

A lenda é tratada em todas as variações: o feitiço, a simples metamorfose, o disfarce e o animal extraordinário. Predomina o homem-lobo, mas há exceções tanto em quem se transforma quanto no que se transforma. Nos contos O Lobisomem das Montanhas Hartz e A Loba Branca são mulheres que viram lobas, embora os motivos em ambos os casos não sejam claros. Já nos contos Os Olhos da Pantera e O Urso Negro a figura lupina é afastada. Saki tem dois de seus contos incluídos, Gabriel-Ernest e Os Intrusos, sempre permeados de ironia e humor apesar do tema voltar-se ao misterioso e sobrenatural. Contudo, o segundo, assim como o de Maupassant, trata menos de fenômenos que de animais.

Talvez o nome de Colm Tóibín só tenha sido melhor conhecido pelo público brasileiro após a Festa Literária de Parati (Flip). Encontrei um sítio com a biografia sumária e a bibliografia de cada um dos participantes e deparei-me com este irlandês cujos títulos traduzidos são os romances A Luz do Farol e O Sul e o livro de ensaios Amor Em Tempos Sombrios. Mais tarde, encontrando um exemplar do primeiro d'eles, as únicas apresentações próximas sobre o conteúdo eram os textos da quarta capa e das orelhas. Após a leitura é que obtive maiores informações sobre o autor e sua obra.

O tema d'A Luz do Farol é o esforço de três mulheres, avó, filha e neta - Sra. Devereux, Lily e Helen, respectivamente - em vencer a incomunicabilidade e o mal estar entre si. A personagem principal é Helen, e é no seu passado que ela deverá buscar a origem das divergências que resultaram em incompreensão mútua e falta de entrosamento. Os oito capítulos são os oito dias percorridos pela narrativa, praticamente um prazo final concedido para superação ou início de superação dos problemas acumulados em mais de vinte anos. Como o único ente que as liga tem sua homossexualidade revelada e está morrendo de Aids, o clima é d'uma imensa tensão acompanhada d'um imenso constrangimento. Três pessoas que não se toleram obrigadas a permanecer n'um certo local, presenciando acontecimentos que talvez preferissem acompanhar - e até assimilar - sem interferência.

O transe todo é atravessado sem preparativos. Não lhes foi sequer concedido tempo de absorção das notícias. Eis o transtorno resultante de se afastar simplesmente as dificuldades da existência sem enfrentá-las e sem dar-lhes uma solução definitiva. O espírito acaba pego de surpresa e desarmado. É de supetão o aviso da iminência da morte do irmão, a informação de que o neto quer passar em casa seus últimos dias e a revelação da homossexualidade e doença do filho. A inquietação da avó é revelada pelo fazer constante de chá e pelo contínuo olhar pelas janelas, buscando na área externa a solução que não possui. Também é perceptível que ela sente-se mais à vontade com os amigos de seu neto do que com o próprio. A simpatia, entretanto, pode revelar indiferença, pois se com eles não há envolvimento direto, também não há preocupação. A mãe tenta ser calma, mas está sujeita a um indisfarçável descontrole emocional. A irmã, por fim, não disfarça o desconforto em conviver em hora tão perturbada com pessoas das quais afastou-se propositalmente. A trama passa-se toda na Irlanda contemporânea.

Para ir além








Ricardo de Mattos
Taubaté, 4/11/2004

 

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