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Sexta-feira, 26/11/2004
Nós — os jornalistas de alma vendida
Julio Daio Borges

"Como é dura a profissão de estilista", costumava se queixar Nélson Rodrigues, que, em determinadas épocas de sua vida, tinha de preencher três ou mais laudas diárias com crônicas onde vendia também um pouco de sua alma de artista. Outro dia, eu observava uma vitrine de uma antiga loja de discos e lembrava o quanto aquela visão, dos álbuns e dos músicos exibidos, costumava me despertar o interesse e me transportar para um mar de possibilidades aparentemente infinitas. E, de fato, eu descobriria continentes navegando naquelas obras e, anos atrás, ficava imaginando como seria viver de consumir e de divulgar cultura — exatamente como faz um jornalista...

Hoje, do lado de cá, procuro contrabalançar as expectativas que antes tinha da profissão e a impressão, que a maioria das pessoas tem, de como um jornalista deve agir. Esses dois extremos, combinados com a minha experiência acumulada, são a base para esta meditação.

Tudo isso me ocorreu quando li, em primeira mão, a orelha do novo livro de Diogo Mainardi, onde ele afirma que anteriormente não tinha muitas opiniões para dar, mas que hoje, depois da coluna em Veja, as vende para quem quiser comprar. Ele não é burro de dizer que vende a opinião de quem lhe paga; na verdade, ele não esclarece mas deixa subentendido que vende a sua opinião (a opinião de Diogo Mainardi) sobre um assunto determinado por quem lhe paga. A diferença é sutil e eu fiz questão de frisar.

Por conta disso, Marcelo Rubens Paiva, em sua coluna nova no Estadão, veio a chamá-lo de "inopinado". Montou um diálogo em que o personagem não ligava a mínima para o contexto e para a realidade, simplesmente emitia uma opinião (ou uma opinião contrária) apenas porque esse era seu trabalho. Exatamente como defendia Diogo Mainardi.

Então eu pensei que os jornalistas são um pouco como a prostituta de Isaac Bashevis Singer: como se deitam com vários homens, deixam sua alma espalhada por toda parte. E, realmente, se você for observar, o jornalista tem de se apaixonar pelo assunto que vai cobrir, tem de digeri-lo e tem de reproduzi-lo, deixando no texto alguma porção de si.

Assim, ou o sujeito, no meu caso, se emociona profundamente com cada disco, com cada livro, com cada filme — e passa pela montanha-russa sentimental, com os altos e baixos inerentes a cada assunto —, ou desenvolve um mecanismo de proteção, que lhe permite entrar no tema "até ali", reportar profissionalmente aquilo e depois sair, sem se envolver verdadeiramente e em profundidade.

Quase a totalidade dos jornalistas, a meu ver, faz isso e — devido a seu distanciamento, meio que num instinto de autopreservação — termina acusada, no mínimo, de insensível. A maior acusação, feita por quem gosta de ler, aos textos dos grandes veículos, é a de que eles não têm personalidade — parecem todos escritos pela mesma pessoa. Isso se deve, é claro, às vezes, a rigorosíssimas imposições de estilo, ao lead (o quê, como, quando, onde e por quê) e também ao dedo do editor, mas, em grande parte dos casos, se deve à mesma carapaça desinteressada que os jornalistas desenvolvem para, justamente, não estar, todo dia, vendendo sua alma nas rotativas.

Quem já esteve entre jornalistas ou conviveu em certa medida com eles, não deixa de notar aquele ar blasé, aquela expressão congelada, aquela atitude "olímpica" de quem já viu tudo e de quem conserva a alma petrificada, fria, analítica — diante de seja-o-que-for: do 11 de Setembro à maior obra-prima já concebida, nada parece abalar a carcaça cética do jornalista.

Eu já praguejei contra isso. Primeiro, quando era um desconhecido e queria me fazer conhecer pelos grandes veículos. Escrevia, escrevia, escrevia — e recebia, no máximo, comentários reticentes ou suficientemente ambíguos, mesmo que remetesse a bomba atômica por e-mail ou afundasse por semana um Titanic — ninguém parecia querer saber de mim... "Ou estou tremendamente equivocado, ou os jornalistas estão todos anestesiados", pensava comigo. Depois, já imiscuído entre meus pares, reclamei de seu alheamento, de seu pretenso ar "adulto", ante a produção cultural do Brasil e do exterior. Claro que, sozinho, não consegui mudar nada disso — apenas fiz o registro do meu próprio espanto, quando a resposta dos jornalistas, a qualquer estímulo, era inexistente ou quase nula, não importando quem ou o quê estivesse do outro lado da linha.

De minha parte, como jornalista, tento "conviver" com aquilo que se tornará objeto de meus escritos — lendo os livros, ouvindo os CDs, vendo os filmes... — mas tenho percebido, a cada dia, que cada vez menos gente, nas redações, parece se preocupar com isso. E, para o nosso grande pesar, cada vez menos leitores parecem perceber a diferença — entre quem leu, ouviu, viu e quem não leu, não ouviu, não viu... Então eu compreendo, perfeitamente, a indignação de certos artistas que: ou têm suas declarações completamente distorcidas; ou obtém uma avaliação absolutamente obtusa do que produziram; ou, pior, passam totalmente desapercebidos pelo que se convencionou chamar de "mídia".

A maior defesa desse "descolamento" por parte do(s) jornalista(s) é a de que o jornalismo é uma profissão como outra qualquer. Ou seja: pode ser realizada mecanicamente, em ritmo industrial, e não requer um grande envolvimento ou um "fazer artesanal" ou, ainda, um "fazer artístico". É, mais ou menos, a defesa que Diogo Mainardi apresentou outro dia numa entrevista: confessou que, de repente, se cansara das privações materiais da vida de escritor e decidira simplesmente "viver bem", dar condições melhores, de existência, principalmente a seu filho e a sua família. Em outras palavras, fazia como tantos profissionais em tantas outras profissões: comercializava seu ofício e objetivava, obviamente, ganhar dinheiro com isso. É uma posição defensável e até realista. Nitidamente se contrapõe ao desejo, considerado juvenil ou pueril, de cultivar um certo idealismo: de realizar o melhor possível, sem sucumbir, precisamente, aos apelos por maiores ganhos (algo nem sempre eticamente justificável ou mesmo lícito).

Natural que a melhor opção seria poder conciliar "o melhor de dois mundos": dar o máximo de si, por uma "boa causa", digamos, e, ao mesmo tempo, conseguir sobreviver, viver e, quem sabe, lucrar financeiramente com isso. Hipótese quase impossível.

Nem preciso dizer que, do jeito que as coisas estão, todo mundo perde. O artista, é óbvio, porque nunca tem a cobertura devida. (Ou a divulgação é parcial, ou é imprecisa ou nem chega a ver a luz do dia.) O leitor, é óbvio também, porque não recebe o esclarecimento que deveria, ou, pior, nem fica sabendo de algo que supostamente mereceria sua sensibilidade, seu tempo, sua atenção. E o jornalista perde porque: ou entra de cabeça na sua pauta, faz uma tremenda de uma pesquisa e não ganha nada mais com isso; ou joga tudo pro alto, obedece cegamente ao Ibope, ao marketing, aos donos-da-verdade em escritórios e empresas de mídia.

Qual a saída? Eu não sei. De minha parte, como disse, procuro ser honesto comigo, com quem me lê e com os textos que assino. Preciso "estar ali"; senão, não publico. E, dentro do Digestivo, procuro selecionar quem tem algo a dizer, vozes possivelmente autênticas — palavras emitidas por quem não está morto por dentro. É provável que isso tudo seja uma ilusão de ótica... Desde que comecei (em 1998), não foram poucos os que acharam que: ou eu iria me cansar e desistir; ou eu iria me vender e dançar conforme a música; ou um terremoto, ou uma guerra nuclear, iria(m) me impedir. Nada disso, felizmente, se concretizou. E, entre as pessoas que escolhi, algumas perseguiram os holofotes, outras se perderam em pseudônimos, outras, lucidamente, abandonaram o jornalismo e ponto — mas uns tantos continuaram firmes. E esses estão construindo comigo um jornalismo, talvez "off-mídia", em que, por trás, estão jornalistas de carne e osso enfim. Ninguém, evidentemente, tem a pretensão de que isso seja mais do que uma gota no oceano da grande imprensa, mas, pelo menos, podemos reclamar, como Nélson Rodrigues, de se derramar periodicamente em papel — e da irresistível dureza da profissão de estilista...

Julio Daio Borges
São Paulo, 26/11/2004

 

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