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Quarta-feira, 10/11/2004
Uma derrota moral
Daniela Sandler

A reeleição de Bush para a presidência norte-americana coroou a campanha mais acirrada das últimas duas décadas. Tanto Republicanos quanto Democratas - assim como boa parte dos comentaristas nos Estados Unidos e no Brasil - têm proclamado o triunfo do conservadorismo. Por trás dos discursos de vitória, ou dos agouros alarmistas, há a premissa de que teríamos sido menos conservadores, ou mais "liberais" (como se diz nos Estados Unidos) até há pouco. O fato é que os Estados Unidos, assim como o Brasil, sempre foram conservadores. Lula não foi eleito porque o eleitorado moveu-se à esquerda, mas porque o PT se mexeu para o centro. Da mesma forma, os Estados Unidos sempre foram fortemente reacionários em política, religião, cultura, economia - e, se há alguma mudança nos últimos quarenta anos, não é a guinada à direita, mas a liberalização. Basta pensar no movimento pelos direitos civis dos negros, que ganhou corpo nos anos sessenta, quando alguns Estados ainda segregavam negros e brancos em partes diferentes dos ônibus. A mídia faz farol sobre a oposição ao casamento homossexual, mas o fato é que em algumas partes do país casais gays têm direito à união civil, e, mesmo quando não têm, muitas instituições e companhias oferecem os mesmos benefícios de casais heterossexuais (como seguro-saúde).

Melhor dizendo, então, os Estados Unidos ainda são conservadores. A atual polarização entre os partidos Republicano (direita) e Democrata (esquerda) é recente. Até os anos sessenta, ambas agremiações incluíam conservadores e liberais - e, no século dezenove, o partido Republicano era o mais avançado. Até há quarenta anos, o partido Democrata contava com uma imensa e poderosa ala nos ultraconservadores estados do Sul - uma ala de políticos segregacionistas, de direita e antiliberais. Portanto, o alcance do partido Democrata em meados do século não deve ser entendido com uma nação mais liberal, mas como um partido mais conservador.

Valores morais

A questão mais inquietante dessa eleição não é a vitória conservadora, mas o tipo de conservadorismo que se afirma. Quando o conservadorismo corresponde a uma inclinação política - por exemplo, neoliberalismo econômico, ou a corrente libertária (extrema direita norte-americana, que defende a não-interferência do governo em assuntos particulares - de impostos a posse de armas - com liberade individual máxima) - é possível ao menos estabelecer um debate. Na arena política, ou na esfera pública, não é necessário, nem desejável, que todos concordem ou partilhem a mesma exata opinião (o que seria totalitarismo, no mínimo). O ideal é um diálogo constante entre grupos de orientação diversa, de modo que a pluralidade seja respeitada sem exclusões ou imposições, a não ser aquelas que beneficiem o bem comum. Pois bem, quando o conservadorismo se restringe a um programa político-econômico, é ao menos possível estabelecer discussões e formular críticas. O problema com o atual conservadorismo norte-americano é o seu fundamentalismo. Apoiar Bush, votar nos Republicanos, ser conservador - tudo é uma questão de fé. Não é necessário argumentar, não há dever de explicar. Confortável para quem vota, perfeito para quem governa.

Muito se fala nos 22% dos eleitores que dizem ter votado em Bush primeiramente por "valores morais". O que quer que sejam esses "valores morais" não foi definido na pesquisa de opinião, mas eleitores entrevistados e representates do partido Republicano oferecem explicações. "Valores morais" têm a ver com religião, mais especificamente cristã, e mais especificamente ainda evangélica/protestante. "Valor moral" é a oposição ao casamento gay, ao direito ao aborto, e à pesquisa científica com células-tronco. O argumento é que aborto ofende o direito à vida do feto; o casamento gay ofende a "sacrossanta instituição do casamento"; e a pesquisa com célula-tronco envolve o assassinato de embriões congelados.

A ofensa diante desses assuntos não se desdobra em argumentação, mas se esgota em ultraje "moral" (como se ultraje fosse auto-explicativo) e intolerância. Afinal, seria talvez inconveniente para os defensores dos valores morais admitir suas próprias contradições. Os mesmos cristãos republicanos que atacam o aborto defendem a pena de morte e o direito ao porte de armas (não apenas para caçar raposas), impávidos diante da destruição de vidas que uma e outro implicam. O "assassinato" de embriões congelados é mais espantoso: o destino original desses embriões, já existentes em laboratórios, seria a destruição ou congelamento eterno. Nunca se transformariam em fetos incubados em útero, muito menos em pessoas. A pesquisa com células-tronco utiliza partes desses embriões para desenvolver técnicas que, no futuro, poderão reparar lesões da espinha ou outros nervos, ajudar a tratar doenças como o mal de Parkinson, ou a reparar órgãos comprometidos - córneas, fígado, dentes... Em suma, essas células descongeladas poderiam melhorar, multiplicar e salvar a vida de muitas pessoas - fato solenemente ignorado pelos defensores dos picolés embrionários.

Absolutismo democrático?

É um tanto assombroso que o direito à vida conviva tão próximo da promoção da morte numa mesma ideologia, e que essa proximidade não seja reconhecida. Mas talvez a questão mais preocupante se revele no casamento gay. É compreensível que uma pessoa extremamente religiosa veja como ofensa à sua idéia de casamento cristão a união entre dois homossexuais. Entretanto, definir a instituição do casamento em geral como "sacrossanta" é ignorar que nem todas as pessoas partilham a mesma religião, nem todas as religiões partilham a mesma idéia do que é e como é um casamento, e que casamento não é sempre ou necessariamente um ato religioso. É também uma instituição civil, e não à toa, permitindo que as pessoas usufruam dos benefícios de uma união oficial sem ter de se submeter a um credo ou procedimento religioso. Mas o próprio Bush definiu várias vezes, em debates e palanques de campanha, o casamento como instituição sacrossanta. O presidente apagou não apenas a distinção entre uma instituição civil e uma religiosa, mas entre Estado e Igreja. Nós, que suspiramos aliviados em aulas de história ao descobrir que a Revolução Francesa finalmente separou o poder político do poder divino em 1789, acabando com a tirania do absolutismo monárquico, talvez tenhamos sido um pouco apressados, pelo menos no que toca aos Estados Unidos.

É irônico, claro, que o primeiro país a aplicar os ideais iluministas na sua liberação política e na criação de um governo democrático tenha sido os Estados Unidos, em 1776, na sua independência - depois que Thomas Jefferson passou uma temporada na França. Mas o país dos pioneiros europeus nunca deixou a religiosidade de lado. 42% dos eleitores de Bush vai à igreja pelo menos uma vez por semana. Religião foi tema nos três debates, com Bush, que é protestante, afirmando sua fé em Deus, e Kerry, que é católico, repetindo que foi coroinha.

Essa união ilícita entre Igreja e Estado, religião e governo, se manifesta em diversos aspectos políticos e sociais. Várias escolas públicas norte-americanas usam livros em que a evolução das espécies descrita por Darwin é considerada apenas uma "teoria", tão válida quanto a criação divina ou a geração espontânea da vida. Mas a integração entre a esfera política e a religiosa vai além de leis, direitos e proibições, vai além de itens individuais. Boa parte do eleitorado americano está encarando o governo e o presidente da mesma forma que encara a igreja e o padre ou pastor. É uma questão de modus operandi: Bush faz sucesso não só porque é um presidente religioso, mas porque o seu papel é visto pelo eleitorado como o de um líder no sentido religioso. Um líder do rebanho, não da nação democrática. Por isso, as muitas falhas do primeiro mandato - desemprego, economia em recessão, guerra no Iraque - são perdoadas com um simples: "Eu tenho fé em Bush".

Vacas no presépio

O modo de falar de Bush é revelador. Ao contrário dos argumentos elaborados, baseados em provas concretas e explicações conceituais de John Kerry, Bush emite apenas afirmações categóricas, sem provar ou explicar nada. São asserções sem evidência, teses sem argumento. Mas Bush as pronuncia com tanta certeza, tanta veemência - e, dependo do assunto, a medida de emoção certa, seja raiva do terrorismo ou comoção pelo casamento - que a afirmação ganha vida própria, poder de convencimento, e aceitação. O público aplaude, ou assente, ou repete, ou completa: sim, é isso mesmo. Sem questionar, como na missa. E, como na missa, as afirmações de Bush têm extraordinário poder emocional, pegando fundo no coração ou nas entranhas de seus espectadores. Suas declarações são no mais das vezes opiniões, posições políticas, pontos-de-vista. Mas, graças a essa "religiosidade estrutural", as opiniões parecem fatos, e a posição subjetiva de Bush ou do Partido Republicano se torna a realidade pseudo-objetiva de seus seguidores.

Obviamente, esse não é o caso com todos os eleitores de Bush ou todos os Republicanos. Há muitos conservadores racionais, e há também aqueles tão radicais que acham Bush um esquerdista. Mas o apelo religioso de Bush ajuda a entender o seu sucesso tremendo entre certa parcela da população norte-americana - o "eleitor médio" do Sul ou do Meio-Oeste, das cidades pequenas e muitas vezes pobres, dos recantos "atrasados". Ou, melhor dizendo, a massa enorme de eleitores que não apenas renovou o mandato de Bush, como também faz da maioria dos Estados norte-americanos redutos do Partido Republicano.

Entre tantos motivos para inquietação, talvez o maior seja mesmo a questão dos "valores morais". Fora a contradição interna explicada acima, há outra contradição na defesa desses tais valores. Pessoas que se dizem muito preocupadas com a vida e com os princípios cristãos consideram que educação e saúde são assuntos secundários. Bush e os Republicanos defendem cortar verbas nas duas áreas, além de seguro-desemprego, aposentadorias, e outros programas sociais. Defendem também cortar impostos, o que significa reduzir o caixa público e, conseqüentemente, os recursos para serviços como escolas e hospitais. Se contarmos os aumentos sucessivos com os gastos em defesa militar e armamento, a verba social fica ainda menor. O partido Democrata, que defende o direito a serviços de saúde gratuitos e investimentos em educação, foi criticado duramente por essa posição, considerada como intervencionismo estatal. A reversão de juízo é tamanha que educação e saúde, ou o direito a elas, não contam mais como "valores morais". Estão a um passo da imoralidade.

Mesmo tomando princípios religiosos, o mundo de Bush está longe dos ideais cristãos. Afinal, o Cristianismo afirma o dever de ajudar os pobres, de fazer o bem, de reconhecer a igualdade de todos diante de Deus. Nesse sentido, um governo com "valores morais" deveria minorar desigualdades sociais, diminuir a pobreza, compensar injustiças de classe, e garantir a todos igualmente o acesso ao mínimo necessário e digno em saúde, educação, emprego, moradia, alimentação e informação. Que isso não seja sequer mencionado pelos mesmos políticos e eleitores fervorosos que afirmam sua fé em Bush é triste não só para "liberais", mas para cristãos, judeus, budistas, muçulmanos... Pois o fundamentalismo, seja político, seja religioso (ou os dois de mãos dadas, o que é mais freqüente), corrompe os próprios princípios em que se baseia, sejam quais forem. O resultado, como o demonstram a guerra no Iraque, o terrorismo e o muro de Israel, acaba dando na mesma: violência, exclusão e destruição.

Daniela Sandler
Riverside, 10/11/2004

 

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