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Quinta-feira, 11/11/2004
Bienal: obras ou arte?
Adriana Baggio

Cansada de pegar chuva na praia, aproveitei o feriado de Finados para visitar a 26ª Bienal de Artes de São Paulo. Cheguei cedo ao pavilhão para evitar a provável fila, já que a combinação de dia de folga com entrada gratuita prometia fazer da exposição o programa preferido do paulistano naquela segunda-feira chuvosa.

A temível fila ainda não se formara. Estava tudo tranqüilo, propício à observação e ao deleite. Da entrada já dava para ver algumas instalações mais espaçosas, que aproveitavam a amplitude do primeiro piso do pavilhão. Além dos visitantes, alguns monitores, operários e funcionários espalhavam-se entre as obras, mexendo aqui e ali. Parecia que a limpeza e a manutenção das instalações não tinha sido feita a tempo.

Dentro desse contexto, a visão de um andaime apoiado em uma das rampas sugeria que algo ali estava sendo construído ou reformado. Uma das pessoas que estava comigo apontou para o andaime e falou qualquer coisa em tom de farsa, usando um dos muitos clichês que os (pretensamente) connaisseurs gostam de verbalizar para mostrar sua intimidade com as manifestações artísticas, por mais estapafúrdias que sejam. Entrando na brincadeira, respondi na mesma linha e comecei a circular pelas obras. Quando cheguei perto do andaime, a explicação ao lado da estrutura indicava que aquilo era, na verdade, uma das obras de arte da Bienal.

Enquanto observava o andaime, ouvia repetidamente um som que parecia o motor de uma britadeira ou qualquer outra máquina que se usa na construção civil. Mesmo já tendo percebido que a estrutura era uma obra de arte, e não uma obra, o significado anterior permanecia e a ele se juntava o som da britadeira. Na verdade, o barulho vinha de outra instalação. Eram galhos secos presos à parede, que por sua vez suportavam motores ligados por pedais colocados no chão, embaixo dos galhos. Cada vez que alguém pisava nos pedais, o motor era acionado e os galhos vibravam, fazendo vibrar também as sementes dentro das vagens secas que pendiam dos galhos. O resultado era um som de chocalho, muito lúdico e engraçadinho.

No extremo desse piso, logo atrás do famoso fusca suspenso por elásticos coloridos, as imensas janelas de vidro do pavilhão abrigavam outra instalação. Era uma cortina de tiras de silicone transparente que desciam até o chão coberto por espelhos. Se estivesse fazendo sol lá fora, a luz refratada pelo vidro e pelas tiras proporcionaria um belo e interessante efeito, conforme explicava a descrição da obra. Mas no lugar do sol, o que se via através da cortina transparente eram operários consertando algo na parede de vidro. Já confusa pelo andaime e pelo barulho de motor que, ao contrário de seus sentidos originais, estavam ali como obras de arte, fiquei me perguntando se os homens faziam parte da instalação de tiras de silicone ou se eram, apenas, meros operários realizando algo útil, e não pretensamente estético.

Em Lingüística, essa transição entre o sentido real e o figurado chama-se denotação/conotação. O sentido denotativo de algo é o real, enquanto que o sentido figurado, metafórico, é o conotativo. Não pude deixar de pensar nisso ao observar o andaime de Thiago Bortolozzo, a Slit Sunny Window de João Paulo Feliciano e outras obras expostas na Bienal. A falta de relevância que se percebe em muitas das manifestações de arte contemporânea faz com que, nessa operação de denotação/conotação, a gente nunca saiba com qual sentido está lidando. Se é impossível distinguir o que é obra de arte daquilo que é simplesmente obra utilitária ou funcional, qual o conceito de arte que faz com que alguns objetos ou manifestações mereçam essa denominação?

A partir do momento em que as obras de arte extrapolam os limites do que pode ser tradicionalmente identificado como arte, é preciso cuidar para que elementos externos não interfiram no significado daquilo que o artista quer passar. Se no mesmo contexto existe um andaime que pode ser considerado obra de arte, sem nada que o diferencie de um andaime de construção civil, é importante que todos os outros elementos igualmente comuns, mas que não são obras de arte, sejam afastados do campo de percepção de uma instalação, para que não pervertam ou confundam a intenção de quem a concebeu. Se a Slit Sunny Window só faz sentido se for observada com a janela de vidro ao fundo, será que a presença de operários não perverte o sentido da obra? Ainda mais se considerarmos que havia um forte campo semântico de construção, obra, reforma, presente naquele ambiente da Bienal, o que já direcionava a percepção do observador. Uma instalação formada por "bacias" de mármore branco, que originalmente continham água quente, estava sendo lavada pelo pessoal da Bienal com singelas esponjas e tubos de Veja, para tirar o limo provocado pela água acumulada. Uma instalação alterada pelos elementos que a compõem ou estando em manutenção pode ser percebida como obra de arte no seu sentido original?

Além das "bacias" de Laura Vinci, outras obras da Bienal não funcionavam ou estavam simplesmente desligadas. A expansão dos limites técnicos da arte provocou uma enxurrada de obras realizadas em vídeo, som, com elementos elétricos e mecânicos, etc. Coisas que falham, estragam deixam de ser ligadas. Qual o sentido de uma instalação que não pode ser observada da maneira como foi criada pelo artista? Se não funciona, se não pode ser compreendida em seu todo, o que era obra de arte retorna ao seu sentido denotativo, voltando a ser apenas uma obra. Não serve para fruição e nem para o entretenimento.

É claro que não é a função de entreter que determina o caráter artístico de uma obra. No entanto, esse parece ter sido o objetivo de muitas manifestações da Bienal. Nesse ponto, acredito que a exposição acaba se confundindo com um espetáculo, no sentido explorado pelo filósofo Guy Debord. A espetacularização é um procedimento típico dos nossos dias, usado para tornar os produtos culturais mais palatáveis e com mais chances de sucesso quando concorrem com outros produtos culturais. Abandona-se o conteúdo em detrimento da forma para que sejam consumidos mais facilmente e em maior quantidade, encaixando-se, portanto, nos procedimentos da indústria capitalista. O jornalismo é um exemplo de produto cultural espetacularizado, onde o princípio da verdade e da realidade deu lugar à notícia divulgada não pela sua relevância, mas por seu potencial de show. Da mesma forma, acredito que muitas manifestações artísticas são espetacularizadas, validadas pelos conceitos da contemporaneidade, mas esvaziadas de sua essência artística. E isso é fácil de perceber quando uma dessas instalações-espetáculo deixa de funcionar por algum motivo. O disfarce artístico cai, revelando o caráter (in)útil daquele objeto/máquina.

Essa discussão não é nova e sempre aparece em volta das manifestações artísticas experimentais, que não se encaixam no conceito tradicional de arte. Discussões como esta envolveram os movimentos artísticos do final do século XIX e começo do século XX, que abandonaram o figurativismo nas artes plásticas. São escolas, obras e artistas de talento inquestionável hoje, mas que foram incompreendidos em sua época. Pode ser que, daqui a algumas décadas, as manifestações que hoje parecem oportunistas tenham seu caráter de arte reconhecido. No entanto, discordo dessa classificação para muitas das obras expostas e badaladas por aí.

Tomando o conceito de arte de Antonio F. Costella, autor de um interessante livro chamado Para apreciar a arte, o que caracteriza a arte é a estética, o conjunto de aspectos que faz uma obra ser agradável, que emocione as pessoas, que possa ser considerada bela além da subjetividade desse conceito, que exista não por utilidade, mas para a fruição e o prazer. Pode ser que a definição de arte varie um pouco para mais ou para menos a partir desse centro, mas não acredito que vá muito longe disso. Nesse contexto, portanto, pode-se considerar como arte uma das obras da Bienal, formada pela projeção em sala escura de dois vídeos que mostram a circuncisão do artista?

Por mais que haja um conceito que justifique essa manifestação, não vejo como encaixá-la na categoria de obra de arte. A não ser, é claro, que se tome a definição de Dino Formaggio, citada no mesmo livro: "arte é tudo aquilo que os homens denominam arte". Uma definição que deixa o território tão livre quanto a temática na qual se encaixam as obras desta edição da Bienal. Ninguém questiona a importância e o valor da liberdade. Mas não se pode deixar de perceber que é essa mesma liberdade que nos dá margem para perceber como arte dois diligentes operários consertando a parede de vidro do pavilhão da Bienal.

Adriana Baggio
Curitiba, 11/11/2004

 

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