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Terça-feira, 16/11/2004
Beirute: o renascimento da Paris do Oriente
Luis Eduardo Matta

Num momento crítico em que o Oriente Médio afunda cada vez mais numa violenta espiral de conflitos que parecem insolúveis, uma cidade, justamente aquela que, nos anos 80, notabilizou-se internacionalmente como sinônimo de ódio, sangue e devastação, volta a encantar o mundo como um enclave ensolarado de calma e prosperidade numa região convulsionada. Beirute, a capital do Líbano, destruída e incendiada por uma longa guerra civil, está de cara nova graças a um bilionário esforço de reconstrução e, pouco a pouco, recupera a reputação que tinha antes da guerra, quando era conhecida como a "Paris do Oriente".

Beirute, situada na costa leste do Mar Mediterrâneo, era a mais bela e desenvolvida cidade do Oriente Médio quando, em 1975, facções cristãs e muçulmanas entraram em choque, dando início a um confronto armado que se arrastou por quinze anos e deixou um saldo de mais de cento e cinqüenta mil mortos e prejuízos da ordem de bilhões de dólares. As causas do conflito remontam à independência do Líbano, nos anos 40, quando um pacto nacional foi firmado dividindo o poder entre as diversas comunidades religiosas cristãs e muçulmanas que compõem o país. Por serem a maioria da população na época, os cristãos tiveram direito a um percentual maior de cadeiras no parlamento e uma presença mais forte na política, na economia e nas forças armadas. Do mesmo modo, como ocorre até hoje, o presidente da República deveria ser sempre um cristão maronita; o primeiro-ministro, um muçulmano sunita e o presidente do parlamento, um muçulmano xiita. A partir de 1970, o estabelecimento no Líbano das dezenas de milhares de palestinos expulsos pela guerra civil na Jordânia - num episódio conhecido como "Setembro Negro" -, fez aumentar consideravelmente o contingente de muçulmanos no país, levando estes a reivindicar uma redivisão de poder. Também a presença de guerrilheiros da Organização para a Libertação da Palestina, a OLP, lançando ataques contra Israel a partir do sul do país, constituía um forte elemento desestabilizador. Os cristãos queriam expulsá-los, enquanto os muçulmanos manifestavam-se favoravelmente à sua causa. A tensão política chegou ao seu limite no dia 13 de abril de 1975, quando um comando cristão atacou um ônibus num subúrbio de Beirute matando mais de vinte palestinos e muçulmanos. Estava deflagrada a guerra.

Quando os combates, enfim, cessaram no final de 1990, Beirute encontrava-se completamente desfigurada. O centro histórico e os bairros ao longo da chamada "linha verde", que durante anos dividiu a cidade em duas, tinham sido reduzidos a ruínas. Em maio de 1994, depois de quatro anos sem guerra, o governo animou-se a reerguer a cidade e uma empresa de capital privado, a Solidere, foi aberta com esse propósito. Em vez de simplesmente pôr abaixo os escombros e levantar construções modernas no lugar, a Solidere investiu na restauração das fachadas originais dos antigos prédios de estilo otomano, paralelamente a um pesado investimento em infra-estrutura. Nas demais áreas de Beirute, pouco a pouco, edifícios avariados pela guerra foram sendo recuperados por iniciativa dos próprios moradores enquanto outros tantos eram demolidos para dar lugar a novos empreendimentos. Novos hotéis e empresas foram abertos, correspondentes da grande imprensa internacional tornaram a fazer da cidade a sua base no mundo árabe, o porto recuperou a importância estratégica do passado - quando fazia a ponte Europa-Oriente Médio -, um novo e moderno aeroporto foi inaugurado e os bancos readquiriram o status de que gozavam antes da guerra (Beirute foi um dos cinco principais centros financeiros do mundo até os anos 70, com um sistema similar ao da Suíça que atraía, sobretudo, investimentos dos ricos países árabes produtores de petróleo). Alguns resultados de todo este esforço podem ser conferidos no belo livro A Memória de Beirute, do fotógrafo Ayman Trawi, que mostra imagens da capital antes e depois dos trabalhos de reconstrução.


O relógio art déco da Place de l'Étoile, fechada para os pedestres

A Beirute de hoje é uma cidade em busca de si mesma, uma mistura algo confusa à beira-mar de Paris com São Paulo, no que as duas cidades têm de melhor e pior. No entorno da Rue de Verdun, o endereço comercial mais elegante do Oriente Médio, butiques das mais sofisticadas grifes internacionais dividem espaço com restaurantes caros e opulentas galerias comerciais. No bairro de Achrafieh, especialmente ao longo da Rue Monot, animados bares e clubes varam a madrugada abertos, atraindo multidões de jovens e notívagos em busca de música e diversão. Após anos fechados, prédios importantes como os do Museu Nacional do Líbano e da Catedral Maronita de Saint-Georges foram restaurados e reabertos ao público. O Grand Serail, no coração da cidade, uma antiga fortaleza otomana erguida no alto de uma colina também foi recuperado e hoje é a sede do conselho nacional de ministros. A cidade conta, ainda, com um generoso número de cinemas, livrarias, teatros e galerias de arte, distribuídos por vários bairros e com uma grande afluência de público.

Por outro lado, são visíveis os problemas econômicos, políticos e sociais. Apesar dos esforços, o Líbano ainda não se recuperou totalmente da década e meia de conflitos. A dívida pública é considerável. O índice de desemprego beira os 20%. Nos arredores de Beirute, palestinos amontoados em campos de refugiados miseráveis que lembram favelas lúgubres, não conseguem ocupação por conta da baixa qualificação e da rigorosa legislação trabalhista do Líbano que restringe o emprego a estrangeiros e, de quebra, ainda sofrem uma pesada discriminação por parte da sociedade libanesa que, ainda hoje, os responsabiliza pelo início da guerra civil. Os militantes xiitas, ligados ao movimento Hezbollah, também são uma fonte de tensão permanente, embora, após a retirada das tropas de Israel do sul do país em 2000, seus arroubos belicistas tenham diminuído consideravelmente e sua atuação, hoje em dia, esteja circunscrita muito mais ao campo político e de assistência social.


Beirute sob pesado bombardeio aéreo, em 1982


A mesma área, duas décadas mais tarde

Para os libaneses, no entanto, poucas coisas são mais degradantes do que a eterna presença de tropas sírias no país e a influência decisiva que Damasco ainda exerce sobre o governo e a política do Líbano. O país, embora seja, em tese, uma democracia, ressente-se do fato de as eleições serem manipuladas e de a imprensa, volta e meia, sofrer perseguições e intimidações por parte dos sírios, como ocorreu, por exemplo, com a Murr Television (MTV), fechada por ordem da Justiça em 2002, por causa de um suposto descumprimento da legislação eleitoral. Coincidência ou não, a emissora pertencia ao deputado cristão Gabriel Murr, um notório inimigo dos sírios.

Nada é definitivo na Beirute atual, ainda mais considerando-se a história da cidade, destruída sucessivas vezes ao longo dos séculos por guerras, fogo e terremotos e sempre reerguida a seguir em cima dos próprios escombros, o que lhe valeu, inclusive, o apelido de "a cidade que nunca se renderá". Graças a essa trajetória dramática e um tanto peculiar, foi possível, durante as recentes obras de reconstrução do centro, descobrir, oculto no subsolo, um vasto sítio arqueológico, com vestígios das várias Beirutes - fenícia, helênica, romana, bizantina e otomana - soterradas pelas intempéries do passado. A decisão de preservar essas ruínas a céu aberto, incorporando-as à paisagem da cidade, pode servir como um alerta permanente aos seus moradores. Assim como nos anos 70, por conta da sua prosperidade e neutralidade suíças, o Líbano acreditou que estava imune à instabilidade reinante na vizinhança, quem pode garantir que, no futuro, Beirute não se veja novamente convulsionada pela violência? Uma vez que a cidade encontra-se encravada numa região que, muito provavelmente, não conhecerá a paz tão cedo, não é uma hipótese que deva ser totalmente descartada.

Luis Eduardo Matta
Rio de Janeiro, 16/11/2004

 

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