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Segunda-feira, 29/11/2004
Por que se lê e por que se escreve?
Marcelo Maroldi

"Por que a gente escreve? Para quem escreve? Se se começar com esta indagação, não se escreve mais! Escreve-se, é tudo, e as pessoas nos lêem. Escreve-se para as pessoas que nos lêem. Os escritores que ninguém lê são os que levantam tais questões."
(Os Mandarins, Simone de Beauvoir)

Algumas vezes a madrugada chega, fria, definitiva. Os vaga-lumes iniciam a sinfonia e o barulho da lua zombeteira começa a ecoar do lado de fora da casa. Olho pela janela grande. A lua está lá, impondo-se, falsa, e atraente. De repente esqueço dela, e das pessoas que também a olham por aí, e do mundo comum, e das coisas comuns, e de mim: leio, ou escrevo... para mim, para os outros, para ninguém, para todos... Que diabo! Ser escravo das palavras, das próprias palavras, das palavras dos outros, de palavras que se perdem, insensatas, verdadeiras, e de frases inteiras que significam algo. Mas, por que apenas a mim significam algo? Os outros preferem olhar a lua, as palavras não significam nada para eles... Por que somente um ou outro escreve, ou lê? Ou escreve e lê? Que tipo de efeito causa no cérebro o ato de ler e escrever, afinal?

Näo esquecerei - era menino ainda - e vi na TV uma reportagem sobre o maior escritor do Brasil. Eu ainda era iniciante, mas vieram-me alguns nomes à cabeça. Não era nenhum desses. Tratava-se de um homem na Bahia, se não me engano, que escrevia livrinhos de faroeste e os vendia nas feiras. Era o maior de todos porque escrevia um livro a cada 2 ou 3 dias. Anos mais tarde, vi no jornal O Estado de São Paulo sobre o maior leitor do país, alguém que tinha lido naquele ano em questão 150 ou 160 livros. Por que alguém leria 150 livros em um ano, meu Deus? Isso parece insano... Que espécie de pessoa gasta boa parte do seu tempo lendo histórias dos outros, lendo inverossímeis frases construídas a repetir mazelas humanas recorrentes há 5 mil anos, casos de adultério, de incesto, assassinato, belas e improváveis histórias de amor, de rara solidariedade, de fatos há muito já encerrados, de fatos que jamais acontecerão, de pessoas que se foram, de pessoas que não existem? Por que perdemos tempos com isso? Por quê? Repito a pergunta: que tipo de efeito causa no cérebro o ato de ler e escrever, afinal?

Eu quero ser poético, sempre, e justificar o ato de leitura como puro, singelo e legítimo prazer, apenas. Quem lê (e quem escreve) realmente sente regozijo em fazê-lo, acredito. Eu o sinto. E não restam dúvidas. Mas, existem tantas outras coisas - algumas mais simples, como observar a lua cheia - que também o dão! Não há nada de prático diretamente resultante da leitura de poesias, por exemplo. Ler toda a obra de Gregório de Matos trará algum benefício evidente e imediato? Não. É somente o prazer da leitura, de fato.

Não consigo apreciar um quadro e emocionar-me, viajar, os pensamentos distanciando-se cada vez mais, sem amarras, o coração acelerando, o sorriso despertado. E já vi muitos quadros por aí. E nada. O que há de errado comigo? Por que meu olho dilata agradecido lendo e não dilata surpreso vendo uma obra de arte? E por que, em outras pessoas, acontece o contrário? E por que, pessoas pintam quadros que valerão milhões séculos depois se não significam absolutamente nada para mim? Por que não vendem os quadros e montam grandes bibliotecas? Deve significar algo para eles. Eu juro que queria chorar olhando esculturas e pinturas... O que há de errado comigo? Por que os livros monopolizam minhas emoções? Por que somente os livros me fazem sonhar? E a música clássica? Por que somente uns poucos sortudos gostam dela? Se é boa como dizem, por que não agrada a massa? A massa não gosta do que é bom também? Só alguns têm o direito de apreciá-la? Falta de costume, de conhecimento? Será?

Nosso cérebro reage de maneira distinta aos estímulos que recebe, a linguagem, as imagens (de quadros) que vemos, aos sons que nossos ouvidos recebem. Talvez aquele amontoado de sons incomuns da orquestra incite o cérebro, atraia-o, como se aquele dissesse: "Opa, esse negócio parece ser interessante! Não ouço isso por aí sempre! E parece mais sofisticado do que outros sons!". Mas se for só isso, por que se chora então? Por que se chora ouvindo ópera? As linhas desenhadas e as cores combinadas nos quadros parecem desafiadoras, de modo que, uma vez captadas pelos olhos, o cérebro as analisa e parece contente em demonstrar o funcionamento do fantástico software que possui. E que funciona bem, sem nada similar reproduzido eficazmente pelos homens. Sabemos, ainda, que nosso software cerebral foi projetado para que identifiquemos formas humanas e animais agradáveis e que isso nos dê prazer, por isso as pinturas desse tipo atraem tanto.

As artes, ainda que acessíveis a todos, não são facilmente produzidas e adquiridas. Há poucos artistas no mundo comparando-se com as profissões "comuns", de modo que "ser artista" dá status. Escrever poesia, tocar cravo e pintar abstratamente aumentam a chance da pessoa obter respeito dos outros. As perícias artísticas são razoavelmente complexas, o que, supõe-se, demonstram maior capacidade nessa área (oriunda de uma genética propícia), tempo livre para se dedicar a isso (como treinar violino 8 horas por dia) e, por que não?, situação financeira estabilizada, pelo menos nos países pobres, onde freqüentar aulas de piano demonstram geralmente a classe social da pessoa.

O que são as artes e por que precisamos delas? Por que abrimos mão de algumas categorias como essas? Por que a arte nos emociona? Por que queremos "aquilo" para a gente, por que queremos ser como os grandes escritores, os grandes atores, os grandes pianistas?

Além do prazer estético e o status obtido, deve-se considerar significativamente o prazer conseguido ao imaginar histórias, pessoas, lugares, (re)inventá-los à sua maneira, transformá-los ao seu gosto, imitar e simular qualquer experiência, vivida ou não, deste ou de qualquer outro mundo ou local que a imaginação permita conceber (irreal sobretudo). Parece agradar ao homem vivenciar de alguma maneira experiências que não viveu e que jamais viverá.

No futuro - não muito distante - possivelmente serão conhecidos alguns dos mecanismos cerebrais, em especial os relacionados à visão e à audição, de modo que poderemos entender melhor o fascínio que as artes causam nos homens e o prazer obtido através dela há milhares de anos e por absolutamente todas as culturas e povos, e que curiosamente seguem o mesmo princípio geral do gosto. Talvez seja possível entender por que gostamos tanto de uma foto ou um quadro, de sons musicais e porque nos emocionamos lendo livros. E então descubramos que o cérebro inventou as artes para nos dar um pouco de prazer. Uma maneira eficiente de nos dar o que sempre buscamos. Nesse caso, então, não haveria muito glamour na arte em si, mas continuaria existindo nos artistas, abençoados com genes que lhes possibilitam criar arte.

Por isso que escrevemos apenas para as pessoas que nos lêem: para que ouçamos depoimentos coerentes com nossas palavras, como o que tentamos transmitir, com o que buscamos, com o significado que certas coisas têm para nós e não têm para os outros. Sentimentos que - conscientes ou não - estão presentes em alguns mas não em outros, tampouco em todos. Sonhos, frustrações e dores que habitam nossa alma - caso ela realmente exista - ou nosso cérebro, pelo menos, e que apenas as artes conseguem acessá-las, revivê-las e fazer-nos chorar feitos uns tolos.

Agora que acabei de escrever, olharei a lua um pouco...

Nota do Editor
Marcelo Maroldi assina também o blog que leva o seu nome.

Marcelo Maroldi
São Carlos, 29/11/2004

 

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