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Quarta-feira, 1/8/2001
Um urro de liberdade
Paulo Polzonoff Jr

ao som de guitarras elétricas

Tenho uma terrível confissão a fazer. Quero dizer, não é tão terrível assim, mas eu a faço terrível. Vá lá, deixo um pouco de me auto-flagelar e coloco a culpa no tempo: o tempo em que vivo faz esta confissão ser a mais horripilante possível. Porque me torna um pária.

Pior que tudo, acho. Se eu fosse homossexual, teria uma prefeita em São Paulo a me apoiar. Que tal? Fosse um psicopata, teria sempre um promotor público para me defender (e outro para me acusar, é bem verdade). Fosse um drogado, estirado nas ruas, estaria sob a custódia do Ministério da Saúde e velhinhas católicas até teriam pena de mim, todo picado. Além disso eu seria tema de filmes interessantes, como Trainspotting. Se eu fosse um mendigo bêbado vomitando nas sarjetas, sempre teria o AA para ir, ou um abrigo público, sei lá. Como sou uma pessoa inteligente, porém, sou um pária.

Não, não. A inteligência não é a confissão a que me refiro no primeiro parágrafo. A inteligência é a causadora - não o mal em si. E aqui peço desculpas já pela minha falta de modéstia. Esclareço, entretanto, que minhas idas e vindas ao psicanalista me obrigam a dizer isso: eu sou inteligente, porra!

Tudo bem, agora estou mais calmo. Sou um pária, desprovido de qualquer preocupação por parte da sociedade porque, porque, porque... Desculpem-me, mas para mim é difícil...

Bem, deixe-me dar umas voltas no texto, criar coragem e por fim fazer a confissão.

Primeiro temos de voltar no tempo alguns anos. Muitos anos. Lá pelos idos dos anos 50, nos Estados Unidos. Num destes estados do Meio-Oeste, com aqueles caipiras americanos que acham que são os donos do mundo e que o mundo acaba no Grand Canyon. Pois bem, foi num destes lugares que surgiu um mito, um deus, um homem acima de todos os homens: Elvis Presley. O caipirão - que era caminhoneiro - teve uma idéia interessantíssima: juntar o blues com o country, colocar umas guitarras, dançar de um jeito esquisito e fundar um novo estilo musical: o rockīnīroll. A partir de Elvis, surgiram outros e outros semi-deuses, até que o rock atingisse um grau de fanatismo que assolou o mundo com seu Taliban sensorial. Este Taliban teve sua cara mais famosa no quarteto de Liverpool. Estávamos perdidos para sempre.

Reza o ditado - e ditados são extremamente importantes, como nos ensina Autran Dourado em seu Novelário de Donga Novais, um romance imperdível, composto apenas por lugares-comuns e ditos populares -, reza o ditado que nada é tão ruim que não possa piorar. Depois dos Beatles e suas ingênuas guitarras, vieram os metaleiros, depois os progressivos, depois os death-metals, depois.

Mais ou menos por esta época eu já estava morto. De culpa. Por minhas preciosas células cinzentas.

Acho que já deu para perceber que a confissão horrorosa que tenho a fazer é a de que não suporto rock. Acho o rock uma coisa inconcebível como música. Aliás, para início de conversa, defendo neste texto que o rock não é música. Talvez seja arte, mas música, necadepitibiriba.

É algo difícil de afirmar, mas não tão difícil de provar. Pelo lado etimológico da coisa, pode-se pensar que uma palavra como "música" não pode englobar algo tão grande, que vá desde Mozart a Beatles. Uma palavra existe para cercar um pequeno universo. É por isso que nosso léxico é vasto. Chamar rock de música é colocar o Sepultura lado a lado com Bach. Isto lhe soa agradável? Nem a mim. Além disso, há aspectos mais ou menos técnicos. Pensemos nos acordes usados no rock, num total de três. Três! Ou quatro, quando muito. Os próprios roqueiros dizem que a tônica do rock é mesmo a simplicidade. A simplicidade ao extremo. Só que esta simplicidade ao extremo desfigurou a matéria inicial e transformou-a num ser que não se pode chamar mais de matéria. Faço-me confuso? Que tal esta afirmação: o rock é um aborto da música. É como um ser humano sem cérebro, sem braços, sem pernas, sem vísceras: apenas com uma pele de ser humano que contorna um tronco de ser humano e algo parecido com uma cabeça de ser humano. Nunca, contudo, um ser humano.

O ponto crucial, entretanto, ainda é este: não se pode colocar lado a lado Beethoven e Mick Jagger. Assim como não se pode, em pintura (e isto é assunto para outro texto), colocar lado a lado Veermer e Andy Warhol. Ou pior, Liechtenstein. Assim como não se pode colocar lado a lado Camões e Décio Pignatari. E assim por diante.

Acho, sim, que rock seja arte. No sentido em que arte pode ser compreendida como todo um macro-movimento, que envolva principalmente o comportamento de toda uma geração. Ou mais de uma. É inegável que o rock tenha se tornado marca registrada de um tempo. Um tempo de coisas efêmeras, diga-se de passagem.

Partindo do pressuposto acima, de que é algo terrível dizer que não se gosta de rock, pode-se afirmar ainda que o rock virou uma ditadura da qual é, no mínimo, difícil escapar. Modestamente eu sugiro que vocês escutem os concertos de Bach para cravo ou violoncelo. Verão que o caminho por debaixo deste muro de Bobs Dylans, Micks Jaggers e Johns Lennons não é tão árido assim. Há luz depois das trevas.

minha madeleine no chá de Proust

Acredito que a maioria das pessoas que leu meu até aqui deve ter me odiado. É uma coisa perfeitamente normal e compreensível, conquanto seja extremamente bizarra. Por razões que me fogem a uma compreensão mais simplista, a qual pudesse eu expô-la a vocês, nós, brasileiros: temos sempre este mania de achar que o texto alheio nos agride se nos contraria. É mais ou menos como se o autor do texto fosse um inquisidor forçando um judeu a tornar-se um cristão novo pela força do empalamento. É pena que encaremos assim ainda a palavra escrita; trata-se de uma tradição arraigada, contudo, que estou longe de poder minorar. Paciência.

Este texto, entretanto, foi escrito principalmente, mas não somente, para aqueles que me odiaram. Perderam seu tempo.

Sei que dizer assim que não se gosta de rock é algo terrivelmente periclitante. Minha intenção, contudo, não é de modo algum entrar em conflito. Até porque tenho mais o que fazer, como sabem aqueles que me são mais próximos.

O rock, claro, me evoca memórias - ruins e boas. Como muitos dos meus leitores, tenho o gênero como assim uma espécie de madeleine proustiana a me evocar sete volumes de memórias. Não gostar do rock, permito-me; desconsiderá-lo, acho um crime.

Até porque fui uma criança muito, mas muito pobre culturalmente mesmo. E eu tive de construir meu castelinho a partir de joguinhos de erro-e-acerto. No caso da música, o rock se me apareceu como contraponto à ditadura sob a qual eu vivia na época, que incluía coisas como Chitãozinho & Xororó e até, para quem não se lembra, João Mineiro & Marciano. Isto lá no princípio da década de oitenta.

Engraçado. Ontem eu estava compondo este texto na minha cabeça quando caiu uma fenomenal chuva de granizo aqui em casa. O chão ficou coberto de gelo. Em alguns lugares, o gelo se empoçou de tal modo que se podia pensar em neve, claro. Como no jardim que há na frente do meu prédio. Então, quando eu quase desistia de uma lembrança anterior ao RPM, fui acometido por um acesso de John Lennon por todos os poros. Era o ano de 1980 e o ex-beatle fora assassinado. Era também meu aniversário. Chovera granizo naquele dia. Muito mais do que ontem, aliás. Eu morava num conjunto habitacional com um imenso declive que ficou branquinho, branquinho. Cinco e meia da tarde, acho, e eu esperava meus pais voltarem do trabalho. Esperava o bolo de aniversário - quantos anos não digo. Comemos o bolo (que certamente não era de chocolate, o meu preferido; minha mãe odeia bolo de chocolate e, sabe como é, ela sempre deu as cartas) e sentamos na tevê para assistir ao Jornal Nacional e eu lembro de Imagine sendo tocada muitas e muitas vezes. Tá, sei que virão me dizer que Imagine não pode ser citada como exemplo de rock. Talvez, mas John Lennon com certeza foi um bastião do gênero. E é da morte dele, que coincidiu com meu aniversário, a primeira lembrança da minha curta vida.

Mais tarde, eu ganharia o já citado disco Rádio Pirata Ao Vivo, do RPM. Quem nunca escutou Paulo Ricardo & Cia cantarem ou já estava velho demais para estas coisas ou simplesmente perdeu um momento vigoroso do rock brasileiro. Conheço pessoas que dizem que rock não pode, não deve ser cantado em português porque soa como samba cantado em alemão. Têm certa razão, mas não consigo esquecer ainda hoje o toquem-no-meu-coração-façam-(o quê!)-a-revolução daquele disco. Bolachão. Elepê. Meu primeiro elepê só meu, comprado na base da super-economia e às escondidas.

Outra traquinagem envolvendo rock: Legião Urbana. O seu Faroeste Caboclo, com dois palavrões, era para nós o máximo da rebeldia. Escutávamos aquele "cu" e "filhodaputa" como quem profana uma estátua santa. Éramos crianças-super-poderosas graças àquele grupinho de rock brasileiro, cantando em português. Claro que não estávamos nem aí para a mensagem da letra. Gostávamos mesmo é de gritar cu e filhodaputa bem alto na aula de música no colégio de freiras.

Por falar em Legião Urbana, sei que há uma "turminha do mal" hoje em dia que diz detestar o Renato Russo & Cia. Tudo bem. Cada qual com sua mania de esconder o que já foi. Cada qual com sua mania de querer ser o melhor, mesmo em se tratando de algo tão medíocre quanto o rock. Acho praticamente impossível, contudo, quem não tenha algum momento da vida recente ligado a uma música do Legião Urbana. Eu tenho várias. Chorei já feito um condenado escutando De-tarde-quero-descansar... Desculpem-me, mas não lembro o nome da música. Já citei o caso de rebeldia de Faroeste Caboclo. Eduardo & Mônica é, com certeza, o hino dos bicho-grilos. Quando o sol bater na janela do seu quarto lembra e vê que o caminho é um só. Ou então aquela citação bíblico-camoniana de ainda que eu falasse a língua dos homens, que eu falasse a língua dos anjos, sem amor eu nada seria. E mais tarde: o amor é o fogo que arde sem doer. Ou coisa parecida.

Na minha vida o rock entrou para valer mesmo com o Guns'n'Roses. Não, eu não me envergonho disso. Também não me orgulho, é bem verdade. Mas nada de vergolha. Antes do Guns, contudo, eu tive minha fasesinha punk. Ramones, Clash, Sex Pistols, esta coisa toda. Durou tudo muito pouco e não vale mais do que a pequena citação neste texto nostálgico.

O Guns'n'Roses foi mesmo caso de polícia. Estou aqui tentando lembrar como comecei a gostar do grupo, mas simplsmente não lembro. Só sei que num belo dia estava cantando Take me down to the paradise city e por aí vai. Queria Ter um cabelão a la Axl Rose e, na falta de um (minha mãe sempre deu as cartas...), colocava uma camiseta na cabeça e dá-lhe balançá-la. Take me down to the paradise city. Nice boys don't play rock'n'roll (música que, por sinal, e cantaria hoje numa boa). E a indefectível Sweet Child o'Mine. Como eu já chorei ouvindo esta música.

De todas as músicas do Guns, uma, tenho de confessar, ainda me toca. Eu a peguei no Naspter mas, num destes momentos de raiva, acabei apagando-a. When talking' to yourself, and nobody's home - alone. Não sei nem o nome da música, mas só de lembrar do solo de guitarra que vem a seguir, me arrepio inteiro. Já disse e repito: nada tem a ver com a qualidade da música; trata-se de algo meramente subjetivo, afetivo, ligado à memória de um Paulo primitivo, que tentava descobrir quem era e que, doido para ser, ia adquirindo um pouco das características de cada um que passava por sua vida. Ora, vocês sabem do que falo.

Até que eu abandonasse de vez o rock, até que eu envelhecesse de uma vez, tive uma fase meio hiponga. É, isso mesmo. Gostava essencialmente de Janis Joplin, mas também escutava Jimi Hendrix e The Doors. Sobre esta fase, tenho pouco a dizer. Janis Joplin, bêbada e drogada, era meu sonho de consumo (tsc, tsc, tsc). Às vezes eu fico pensando se ela, em outro tempo, não seria tão boa ou melhor que Billie Holliday. Engraçado: escrevendo isso vou lembrando de Janis cantando Summertime. Como já chorei ouvindo esta música.

Além destes, houve outras bandas e músicas que me fizeram gostar de rock um dia. Como o Queen, por exemplo, cantando, Bohemiam Rapsody. Se é ruim, acho que é; mas eu gostei em certa época da minha vida.

Todo este texto falsamente lírico é para dizer que eu felizmente envelheci. Estou aqui com meu copo de uísque numa mão, comprado com o meu salário, ao invés da cerveja quente e vagabunda comprada com o salário do pai, escrevendo num estilo que, se não é o ideal, e jamais será, tampouco pode ser chamado de adolescente, com argumentos que jamais serão acadêmicos, mas passam longe de serem colegiais. Trata-se de um processo que deve ser o mais natural possível. O problema é que o rock, depois da meia-idade, ou melhor, depois de certa idade que não estipulo para não parecer um estudo sociológico, é sintomático da renúncia da maturidade, doença que acomete cada vez mais pessoas, pós-adolescentes em sua maioria.

Ou seja, o rock pode, sim, estar presente em sua vida. Talvez até deva, como instrumento de contestação adolescente. Um dia, contudo, ele tem de ir embora e ser substituido por formas mais aprimoradas de música. Porque o homem - e perdão pelo arroubo de otimismo - também se aprimora ao longo do tempo.


Paulo Polzonoff Jr
Rio de Janeiro, 1/8/2001

 

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