busca | avançada
63387 visitas/dia
2,0 milhão/mês
Terça-feira, 14/12/2004
Natal S.A.
Luis Eduardo Matta

Todo fim de ano é a mesma coisa. Chega o mês de dezembro e as nossas cidades se enchem de uma atmosfera única, radiosa, de uma efervescência colorida, onírica, mágica. As fachadas se enfeitam, as ruas ganham um fôlego renovado, o vozerio animado das pessoas em torno das vitrines sedutoras das lojas, das árvores de natal montadas nos grandes shopping centers, das prateleiras de supermercados repletas de iguarias natalinas, de frutas secas, nozes e castanhas a perus e tenders congelados; de convidativas postas de bacalhau a caríssimas cestas sortidas preparadas em vários tamanhos e preços. Tudo para celebrar a grande data do ano, a época em que todas as pessoas, felizes, risonhas e generosas, se abraçam e se emocionam, trocam presentes, perdoam umas às outras e se irmanam nesta celebração única: o dia de Natal.

Peço licença aos meus caríssimos leitores para sairmos, por alguns parágrafos, desta atmosfera ideal e ingressarmos num panorama um pouco mais próximo à realidade ou, pelo menos, a uma parte considerável da realidade de milhões de pessoas que, mesmo sem saber, são anualmente aviltadas por essa loucura doentia na qual, uma data tão especial como o Natal se converteu de algumas décadas para cá: uma festa que deveria ser, essencialmente, uma celebração simples e desprendida, transformada, à revelia, numa ode alucinada à compulsão consumista e a um pretenso hedonismo que pouco têm a ver com o que se entende como espírito natalino. Para muita gente, aliás, o mês de dezembro representa a promessa de um martírio: a época do ano em que todos se sentem obrigados a estar felizes, reunidos e em paz com suas famílias, com dinheiro de sobra em caixa para gastar em presentes vistosos e na preparação de uma ceia farta e com muita disposição para encarar a verdadeira maratona que é fazer as tão concorridas compras de Natal. É como se toda a sociedade se visse, de súbito, acometida de uma hipnose generalizada. Basta ligar a televisão que, no primeiro intervalo, começam a pipocar as avalanches de propagandas de Natal, cada loja com suas promoções "imperdíveis" e seus(as) garotos(as)-propaganda desfilando em trajes de Papai Noel (trajes, diga-se de passagem, bastante improváveis para um Natal em pleno verão).

Antes que me acusem de estar fazendo pregação religiosa, quero deixar claro que eu, um católico praticante, há algum tempo não acredito no Natal como uma festa cristã. Muito antes do nascimento de Jesus, a data já era comemorada por vários povos pagãos europeus. Era a festa do "Natalis Solis Invicti", ou o "Nascimento do Sol Invencível", do grande deus sol, celebrada precisamente no solstício de inverno, o dia mais curto no hemisfério norte, que ocorre nesta época, entre 20 e 25 de dezembro. Foi no século IV que o papa São Júlio I decidiu adotar o 25 de dezembro como o dia do nascimento de Jesus com o intuito de enfraquecer a simbologia pagã e cristianizá-la. O Natal, portanto, como uma festividade religiosa não possui, aos olhos de quem conhece a História tal como ela é, qualquer sentido.

Tal argumentação, no entanto, pouco efeito teria na mente das pessoas caso fosse ostensiva e maciçamente difundida, pois o Natal há muito perdeu qualquer conotação religiosa. Hoje, o que conta mesmo é o consumo. Ainda que descendente de antigos rituais pagãos pouco conectados à gênese do cristianismo, o Natal poderia, ao menos, servir como um período breve de alívio para as demandas asfixiantes do mundo moderno, no qual as pessoas se sentem cada vez mais cobradas à luz de um ideal de perfeição e prosperidade que a maioria — para não dizer a totalidade — jamais irá atingir. Teríamos uma festa de celebração da amizade, da solidariedade e da simplicidade. Acolheríamos nossos entes em casa sem compromissos ou cobranças, partilharíamos calmamente uma ceia modesta e não haveria a obrigação da troca de presentes. Daria quem quisesse dar, obedecendo a uma vontade interior e não a uma lógica imposta pelo comércio e pela mídia.

O consumo é parte essencial do bom funcionamento da economia e da vida cotidiana. Não existe nada de errado com o consagrado e largamente adotado sistema de compra e venda, muito pelo contrário. O X da questão não é o consumo e sim a febre consumista, um exagero de tal maneira incorporado à conduta e ao imaginário de todos que as pessoas o encaram como um sintoma perfeitamente normal de uma sociedade urbana moderna. O ato de comprar não é norteado pela necessidade apenas, mas, sobretudo, por um desejo da compra pela compra, não importando muito se o objeto adquirido vai ter alguma serventia. Na época de Natal, essa febre consumista sobe a níveis estratosféricos. Basta sair à rua para constatar a pressa, o cansaço e o desespero das pessoas correndo pelas calçadas e corredores de shoppings, carregadas de compras, muitas das quais feitas à custa de uma limpeza na conta bancária ou de penosos endividamentos. Circular pelos centros comerciais torna-se uma epopéia desagradável e estressante. Eu, por exemplo, evito, se preciso com o uso de força, pisar nos shoppings em dezembro, pois sei que sairei de lá à beira de um colapso nervoso. Do mesmo modo, fico horrorizado com a sensível piora que o trânsito aqui no Rio de Janeiro, já naturalmente caótico, apresenta nas semanas que precedem as festas de fim de ano. Outro dia, para ir de Ipanema a Copacabana — um trajeto que pode ser feito tranqüilamente a pé — levei quarenta minutos retido num longo engarrafamento, tudo porque, além do excesso de veículos, ainda tínhamos de enfrentar as barreiras impostas por inúmeros caminhões parados junto aos meio-fios, descarregando mercadorias para reabastecer as muitas lojas situadas ao longo do percurso. Pela janela, eu via os motoristas enraivecidos, ouvia suas buzinas, sentia um clima ruim ao redor. Uma neurose coletiva e fora de controle. Nada parecido com a idéia de "espírito do Natal" que as propagandas da TV insistem em difundir.

Não é o caso, porém, de vitimizar as pessoas e acusar a mídia e o mercado, como se fossem entidades sobrenaturais empenhadas em massacrar mentes e extorquir bolsos indefesos. O Natal é uma festa em plena conformidade com o nosso tempo, um reflexo de como pensa e funciona a sociedade. Vivemos uma época fortemente mercantilizada em que se é o que se tem e o que se consome e se é essa a máxima que dita as normas no dia-a-dia, no Natal não poderia ser diferente. Mesmo assim, é triste imaginar o que sucede àqueles que, de alguma maneira, escapam involuntariamente aos padrões que a celebração natalina exige para franquear o acesso a todo o seu brilho e esplendor. Uma pessoa sem dinheiro, por exemplo, poderá se sentir a última das criaturas por não ter condições de presentear decentemente um filho, um cônjuge ou um parente querido. Já um indivíduo deprimido, triste por algum motivo, ficará ainda mais deprimido e triste por se perceber incapaz de corresponder ao modelo de felicidade que a ocasião pede. Uma pessoa solitária, sem parentes ou amigos próximos a quem possa se juntar na noite do dia 24, por sua vez, verá sua solidão amplificada de forma quase insuportável. E aqueles que esperam mais da vida, que buscam uma troca afetiva mais profunda com o mundo ao seu redor, se ressentirão ao constatarem que, no Natal, as demonstrações de carinho e amor que tanto valorizam só virão, caso um presente, de preferência um bom presente, seja oferecido em troca.

O Natal transformou-se numa mega-indústria, numa das maiores e mais bem-sucedidas empreitadas empresariais do mundo, de cuja influência é muito difícil escapar. Seria ótimo se o dinheiro tivesse uma importância secundária numa celebração que busca enfatizar a união e o amor ao próximo. Mas, sejamos otimistas: pelo menos, o comércio está aquecido, o que movimenta a economia e gera empregos, ainda que temporários. Muita gente terá um Natal feliz esse ano, embora sem saber que poderiam ter um Natal ainda mais feliz, caso não vivêssemos num mundo tão louco e tão menos atento ao bem-estar coletivo do que ao lucro e à ostentação.

A LPB revisitada

No último dia 7 de dezembro, o jornalista Paulo Roberto Pires publicou no site No Mínimo, uma análise bastante equilibrada sobre Literatura de entretenimento no Brasil — ou, melhor dito, a escassez dela. Entre outras coisas, o jornalista argumenta como seria bem-vindo o surgimento de uma Literatura mais "comercial", colaborando, inclusive, para uma maior aproximação entre autores e leitores; sobretudo, uma numerosa parcela destes, que continua a torcer solenemente o nariz para a produção literária nacional, preferindo os títulos estrangeiros.

Já tive a oportunidade de me debruçar sobre o tema mais de uma vez, sendo que a primeira foi no meu artigo de estréia aqui no Digestivo Cultural, "A LPB e o thriller verde-amarelo", em novembro de 2003. Não vejo porque a Literatura de entretenimento não possa se desenvolver no Brasil e acho uma bobagem preconceituosa quando a associam, automaticamente, a um gênero de má qualidade. Ora, em qualquer ramo da Literatura há obras boas e ruins, mesmo entre os escritores mais sofisticados e intelectualizados, os chamados "estilistas das letras". E é preciso ter em conta que o aparecimento de uma Literatura brasileira de entretenimento não implicará na ruína da tradição literária já existente, nem na consolidação da primeira como corrente predominante em detrimento da segunda. Ao contrário: haverá uma soma, que só benefícios trará ao panorama literário brasileiro. Afinal, quanto mais caminhos forem abertos, mais rica e diversificada será a nossa produção cultural. Por conta disso, faço minhas as palavras de Paulo Roberto Pires, que, no encerramento do seu artigo, afirma que a Literatura de entretenimento "deve ser discutida sem preconceito de qualquer espécie". É isso — debater sem preconceito — o que precisamos fazer.

Luis Eduardo Matta
Rio de Janeiro, 14/12/2004

 

busca | avançada
63387 visitas/dia
2,0 milhão/mês