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Quarta-feira, 15/12/2004
Norah Jones e a massa
Ana Elisa Ribeiro

Norah Jones apresentou, na noite de sábado, 11 de novembro, o show que funde seus dois CDs: Come away with me (2002) e Feels like home (2004), sendo que há músicas de ambos em trilhas de novelas da Rede Globo. Eis a explicação para um ginásio lotado, em Belo Horizonte, para assistir a um show de "jazz" (embora já bastante modificado).

Todas as resenhas e todos os releases sobre o evento apontavam a jovem cantora como uma candidata a diva do jazz, assim como informavam sobre a origem musical inata da moça (filha do músico indiano Ravi Shankar) e sua formação sólida em música. Tudo isso, de fato, fica comprovado ao longo do show. Ao contrário de muitas cantoras e candidatas a "Elis" (no caso do Brasil), a voz de Norah Jones é aquilo tudo e muito mais que se pode ouvir nos CDs. Ao vivo ela faz umas firulas e modifica uns arranjos (de voz e de instrumentos), mas não inventa além da conta. Tudo sob medida, o que dá a forte impressão de que tudo saiu perfeito.

Os músicos são exímios tocadores de contrabaixo (acústico), bateria, guitarras, bandolim, teclados. Todos bem mais velhos do que a "diva" e todos vincados de experiência.

Pontualmente atrasada (aquela meia hora de tolerância para o público), Norah subiu ao palco sem afetação, numa calça jeans e em cima de um discreto salto alto (literal, e não aqueles odiosos metafóricos). A blusinha azul (meio bata indiana) lhe conferia ares de menina e o sorriso e o cabelo cuidadosamente desarrumado deixavam tudo meio "em casa", feels like home...

Ela realmente se sente em casa quando está no palco. Afora a inquietação que demonstrou por não saber falar português, não foi sisuda e nem aparentou estar ansiosa. Interagiu com a platéia, treinou seu "muito obrigada", pediu desculpas por não saber a língua, apresentou os músicos e letristas, improvisou (bem à moda do jazz) e passou elegantemente pelos engraçadinhos de plantão, que insistiam em dar gritos de "gostosa" e "eu te amo".

O show de Norah Jones é retilíneo. Dona de uma voz absolutamente encantadora, ela mapeia a própria carreira sem um escorregão e mantém a platéia acordada, apesar do som "lento".

Mas o que eu quero mesmo é falar da platéia: um show à parte.

Embora Belo Horizonte tenha alguma tradição em jazz e muitos músicos e festivais, o "grande público" não participa desses eventos e prefere coisas como CarnaBelô (extinto por graça de Nosso Senhor) e qualquer coisa que leve o nome de PoPRock...

Não vamos aqui desfiar a história social do blues e do jazz. Para isso, leia-se certos historiadores, muito interessantes, se não me engano, entre eles, Peter Burke. Também a inglesa Ruth Finnegan andou estudando, à luz da etnografia e da antropologia, o comportamento das platéias em relação a gêneros musicais distintos. Mas a platéia belo-horizontina chamou a atenção no Marista Hall.

Em shows do Skank e do Jota Quest é "adequado" ficar em pé, gritar, sacolejar ao ritmo da música, levantar as mãozinhas pro alto e fazer "ola". Talvez a platéia, acostumada a isso, tenha esperado algo semelhante de Norah Jones. É preciso destacar que a cantora levou ao ginásio um público heterogêneo: pessoas mais velhas, músicos, adolescentes e casais de namorados, mas especialmente telespectadores da Globo.

As músicas mais pedidas e mais aplaudidas foram justamente as três conhecidas da platéia. Em um dos casos, com direito a corinho no refrão e gritinho de prazer. Ao longo das demais canções o que se ouvia era um silêncio perplexo e meio entediado. Quando ela perguntou: "Do you know Tom Waits?", porque gravou uma canção dele em seu último CD, a garota ao lado cochichou: "Quem?" e um rapaz mais atrevido gritou: "Tom Jobim!"

Durante as canções globais, a multidão noveleira abria seus modelos Nokia ou Motorola e tornava o ginásio uma festa de luzes azuis. Entre os clientes da telefonia móvel exibidinhos, apenas um rapaz, remanescente dos anos 1980, erguia um solitário isqueiro (ou seria um celular que, além de filmar e bater palmas, também é um isqueiro?).

Na interação com Norah Jones, as frases-padrão: "Linda", "Eu te amo", "I'll get you!" e "Canta aquela!". Esta última muito semelhante aos bilhetes que os bêbados enviam ao violeiro pelo garçom nos botecos.

Para além da metade do show, Norah perguntou à platéia se devia cantar certa canção e se todos gostariam de ouvir dada música. E quando se mostrou indecisa, um grito hilariante: "Toca Raul!".

As meninas da frente dançavam como paquitas, as de trás falavam ao celular com alguém que estava na arquibancada do outro lado, o casal ao lado ria do guitarrista e assim correu o show da cantora americana. Ao celular, a mocinha de trás dizia: "Estamos aqui no mesmo lugar em que estávamos no show do Skank".

Não é questão de elitismo ou de discriminação, mas é engraçado ver o comportamento de uma platéia que não tinha a menor idéia do que ia assistir e para a qual se Norah Jones cantasse apenas três músicas, estaria ótimo.

A cantora não deve ter notado nada, embora tenha parecido constrangida com certos gritos e interrupções. A certa altura, disse que lamentava não entender o que algumas pessoas da platéia insistiam em gritar. Pensei: ainda bem.

O que será que ela pensa? Que somos engraçadinhos ou um bando de sem educação? E o que importa o que ela pensa? Bom mesmo é entrar em trilha da Globo e faturar. O público, por sua vez, costuma se contentar com as coletâneas internacionais de novela, que saem com atores na capa. A superficialidade comum a quase tudo no país.

Conto
às vezes parece sonho. mas também parece pesadelo. ando cada vez mais 'ninguém'. não tenho vontade de ir a óperas, pagodes ou encontros literários. os bares da minha mitologia pessoal já não me soam interessantes. alguns mudaram de endereço e não procurei saber onde estão. o telefone toca muito menos, gasto mais gás e mais luz dentro de casa, durmo com abajures apagados e não me visto bem. as panelas estão mais gastas, assim como a máquina de lavar. as solas de sapato, no entanto, andam novas e limpas. as livrarias ainda me atraem, mas não sei quais são boas e quais são novas. as viagens não me parecem de lazer. costumo me sentir, com facilidade, vítima de algum tropeço de um destino bêbado. os anjos da guarda devem estar de ressaca embaixo de alguma sacada renascentista. o que me alivia muito são as sensações de que o asfalto é quente. dos amigos guardo lembrança tênue. e quando nos encontramos, já não somos mais tão amigos. alguns deixaram suas vozes na minha memória, os rostos ruíram. comida congelada é o paraíso por enquanto.

Ana Elisa Ribeiro
Belo Horizonte, 15/12/2004

 

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