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Quinta-feira, 16/12/2004
Risco, o filme
Marcelo Maroldi

Ultimamente tenho assistido a vários curtas-metragens nacionais. Alguns são bons, outros, nem tanto. Dia desses, vi Risco (Bernardo Gebara, 14'56'', RJ/Brasil, 2004), um filme interessantíssimo que vale a pena destacar. Pouco antes da apresentação, seu produtor dava algumas explicações sobre a sua obra. Atraiu-me o fato de procurar uma visão poética expressa através de um filme. Acredito que ele tenha ficado aquém do seu objetivo, e o filme, que é no seu conjunto muito bom, fica distante da extração lírica que o tema lhe permitia explorar, limitando-se a contar a história e manter-se de certa forma imparcial as imagens exibidas.

O filme gira em torno de um morador de rua, Mauro, que vive a riscar a cidade do Rio de Janeiro com uma pedrinha. É difícil transmitir exatamente a imagem através de palavras, mas, basicamente, Mauro risca os muros, pontos de ônibus, praças, etc., com a pequena pedra, ora construindo figuras simplórias e misteriosas, ora simplesmente riscando o muro ao meio, de um lado a outro. E, pelas imagens, vê-se claramente que faz isso há anos (no final do documentário, informam que faz isso desde 2001), o tempo todo.

Talvez não pareça um bom tema para um documentário, mas, a força das imagens, dos riscos e em especial de Mauro, incitam reflexões diversas envolvidas no tema e garantem a beleza do vídeo. Entre as imagens em que Mauro risca a cidade, alguns depoimentos são exibidos. Pessoas que, de certo modo, convivem com o rapaz no seu dia-a-dia de riscador. Temos o atendente da padaria, a caixa da padaria, o porteiro do prédio onde ele passa diariamente, etc. Dois dos depoimentos dizem algo similar: que um rapaz como ele, bonito, não merecia aquilo. Curioso isso, a beleza do rapaz chama a atenção dessas pessoas. Talvez não se autoquestionem sobre o que o leva a fazer aquilo, sobre quem é, ou algo assim. Simplesmente lamentam por um jovem bem apessoado morar na rua. A caixa da padaria chega a frisar que ele é um rapaz educado, destacando mais uma qualidade que deveria impedi-lo de ser morador de rua. Em um outro depoimento, o rapaz diz que Mauro passa toda à noite a riscar uma mesma parede, de um lado a outro, indo e vindo, todos os dias. Um senhor diz que não precisa ser médico ou psicólogo para saber que Mauro vive em outra realidade. O depoimento mais significativo, na minha opinião, é dado pelo atendente da padaria, que diz que ele faz isso para mostrar que ele está ali, para que o encontrem.

Em momento algum Mauro é abordado. Não sei se foi uma escolha dos produtores ou uma recusa (ou dificuldade) em conseguir falar com o ele. Mas, seja o que for, creio ter sido melhor dessa maneira, sem perguntas, sem questionamentos e sem respostas, permitindo-nos investigar a alma desta intrigante figura segundo nossos métodos particulares e refletir sobre o se passa com o rapaz.

Obviamente, Mauro vive em uma realidade distinta da maioria das pessoas. É certo que essa realidade é muito particular e seria absolutamente impossível adentrarmos nela, saber o que ele pensa. Ainda que ele nos dissesse, jamais saberíamos o que é ser um riscador como ele. Nunca teremos a noção vital que para Mauro assume o ato de riscar os muros, tampouco o que pretende dizer com aquilo, se é que pretende dizer algo. É possível que seja uma necessidade individual e não uma forma de comunicação com o mundo exterior, o nosso mundo. O que impressiona é a extrema importância que os riscos parecem assumir na vida dele, monopolizando todas os passos de sua vida marginal e paralela, direcionando todos seus atos, permitindo-lhe apenas alguns atos básicos além do risco, como comprar três ou quatro pãezinhos na padaria e dormir na grama da praça. Esses atos, obrigatórios, parecem atrapalhá-lo na sua missão, na sua principal ocupação, afastam-no dos riscos. Por isso, há tanto isolamento do personagem. Ele não parece ter colegas de rua, ter pessoas a conversar, ter coisas a se preocupar. Sua preocupação é única, qualquer outra coisa é secundária e um estorvo.

Ele parece não querer alterar o rumo das coisas. Tem-se a impressão de que a vida deve seguir rigorosamente como está. Não há sinais de que se incomoda em viver a rua, de que se incomoda em não ter casa, roupas, filhos a quem abraçar ao retornar do escritório sufocante. Tudo isso é descartável, o importante é riscar, marcar a cidade com sua pedrinha, imprimindo-lhe os seus sinais evidentes da diferença e da incompreensão. Não há necessidade de ser como os outros, de ser alguém, de ser mais um. Ele não quer - ou pelo menos não parece querer - fazer parte do todo, desse todo que dita as regras e impõe limites a subjetividade. É um caso extremo, é verdade, mas simboliza bem a não adequação de alguém ao mundo e as outras pessoas.

Finalmente, a TV Cultura diz que "Esse filme causa uma sensação de solidão e loucura que leva a pensar sobre todos os riscos de uma cidade." Confesso que não consegui vincular o vídeo a essa idéia (os riscos de uma cidade grande). A história é muito maior que isso. Trata-se de pessoas, de arte, de realidade e da falta dela. Melhor concentrar-se apenas nessa idéia.

Ainda segundo a TV Cultura, "Risco é o resultado de uma busca constante do diretor em entender a alma humana". Bom filme, feito por alguém que tem algo a dizer e se preocupa com o que diz aos outros.

Nota do Editor
Marcelo Maroldi assina também o blog que leva o seu nome.

Marcelo Maroldi
São Carlos, 16/12/2004

 

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