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Segunda-feira, 3/1/2005
TV aberta em 2004: o ano do Orgulho Nacional
Andréa Trompczynski

Há coisas que um grã-fino só confessa num terreno baldio, à luz de archotes, e na presença apenas de uma cabra vadia. Lembro-me de uma festa na casa não sei de quem (só sei que era grã-fino). Na altura das três da manhã, o dono da casa põe mais gelo no uísque e diz: - "Na minha casa só as criadas vêem televisão." Os circunstantes concordaram em que a televisão é uma ignomínia.

O grã-fino preserva, ainda no pileque, uma série de poses fundamentais. Uma delas é o falso desprezo pela TV e seus programas. Na verdade meu anfitrião não perdia uma da Dercy, uma do Chacrinha, uma do Longras. Quanto a mim, sou franco: - não preciso do terreno baldio. O fato de ser apenas um pequeno burguês, sem nenhum laivo de grã-finismo, dá-me descaro bastante para confessar, aos quatro ventos: - vejo televisão e, pior, gosto da televisão.

Dirá um intelectual ou grã-fino: - "Mas e o nível? O nível?" Ao que eu responderia, com a mais límpida e casta objetividade, que o tal nível, que se atribui às nossas emissoras é muito relativo. Acusamos o nível da TV e ninguém fala do nosso. Há uma reciprocidade de níveis. A televisão é assim porque o telespectador também o é.


(Nelson Rodrigues, A Cabra Vadia)

Quando escolhi falar da TV aberta nesta retrospectiva de 2004, pensei no nome desta revista: Digestivo Cultural. Ensaios, colunas e comentários sobre cultura. Como eu poderia comentar o programa do João Kléber? Ou: TV aberta é cultura?

Sim, é. Mas e o nível?

Não importa, é.

Parto desta premissa (sempre quis escrever "premissa", perdoem-me, assim como não vejo a hora de escrever "missiva") para começar esta coluna. Desde os programas mais "abaixo do nível" até as raridades salvadoras, acreditem, é a nossa cultura. E nossa cultura em 2004 teve poucas mudanças, mas causou-me algumas impressões.

Este ano, dei de ter pena do brasileiro. Só há uma explicação: a culpa é daquela propaganda do "Sou brasileiro e não desisto nunca" que me provoca uma angústia e piedade quase cristã. Viram aquele homem que devolveu a carteira com os dez mil dólares? Senti tanta pena dele, no final, balançando dentro do ônibus, voltando do trabalho à casa pobre depois do ato honroso. Tão orgulhoso de sua pobreza e honestidade, olhava satisfeito pela janela do ônibus. Ruy Barbosa quem disse: "No Brasil há vergonha em ser honesto". Era para sentir orgulho? Eu senti vergonha. E mais ainda, quase insuportável, quando aquele grego que ajudou o nosso maratonista nas Olimpíadas veio para cá. Não sabia aonde esconder meu rosto de santa piedade quando jogaram confetes na boca do coitado no aeroporto. E cuícas e batuques e mulatas. Foi uma agressão ao grego, quem viu a cena deve se lembrar. Dizia nas entrevistas que nunca mais iria embora e os índios dançavam e as índias rebolavam para delícia do bwana. Naquele dia não pude sair de casa com medo de que algum brasileiro sorrisse para mim com a simpatia toda nossa e eu não pudesse retribuir. Foi o ano do orgulho brasileiro na televisão: avante nosso Brasil!

Comecei então a assistir muita televisão para ver se era verdade essa explosão de orgulho nacional na tal mídia de massa. Era. Eles estavam dando vivas à nossa má-educação (chamam de naturalidade), ao nosso jeitinho, ao direito de falar errado, ao prazer de assistir A Diarista. Eles dão vivas! Havia uma música, parece-me que o nome do "estilo musical" é funk carioca. Algo com um Pokémon. Os jovens dançavam e cantavam todos os grunhidos da música, o apresentador dizia: "su-u-u-ces-so!" Pareciam em êxtase e é impossível sentir raiva, é um inimigo inconsciente, mineral, como discutir com ele? Homenagens à cultura popular em programas ditos um pouco mais inteligentes; uma propaganda louvando os méritos dos cientistas; a infância pobre do cantor Daniel que depois de "muita luta" venceu na vida; um documentário que contava em 40 minutos a trajetória de Paulo Coelho -fizeram questão de contar que ele leu muito- e o chamava de "Alquimista da Palavra"; não importava, lá estava ela: piedade profunda. Então descobri. Deve ter sido algum dos exercícios espirituais que ficaram gravados em meu subconsciente na época em que -uns treze anos atrás- li Brida e O Alquimista, que têm técnicas para abrir os canais da intuição e consultar os oráculos invisíveis, como o amigo do Polzonoff que meditava numa poça de Coca-cola. Olhei tanto para um ponto, o botão de on-off do controle remoto que tive uma revelação. A pena não era deles. Era de mim, que sempre desejei ter aquela fé cega e nunca consegui. Ser um mineral feliz sem mais preocupações que ouvir o funk do Pikachú, ter a alma da Velhinha de Taubaté, longe da grande desgraça de pensar que um mestrado no Brasil, sendo ou não cega como uma das brasileiras que não desistem nunca, não mudaria muita coisa.

Sábado especial para pedófilos
Se eu fosse um pedófilo, seguraria meu copo de uísque e ficaria rodando as pedrinhas de gelo com o dedo ao assistir o Programa Raul Gil nos sábados à tarde. No último dia 4, então, teria chamado meus amigos do Lovely Angelīs Club para petiscarmos pistaches e assistirmos juntos uma garotinha de quatro anos de miniblusa preta do tipo sensual, short preto e maquiada que insinuava sua bunda infantil em uma daquelas danças baianas. Para que gastar horrores comprando fotos em sites proibidos? Está ali e de graça. Triste mesmo era o rosto da menina, nenhum sorriso durante toda a dança-do-bumbum, a maquiagem não disfarçava a preocupação em não errar com que ela fazia aquilo por um provável "sonho" da mãe ou do pai. A inenarrável combinação da música, o rosto seríssimo e pintado da menina e a bundinha no short preto foi uma das cenas mais terríveis que já assisti na "máquina de fazer sonhos".

Programas de cavalheiros
Desconfio que o Jô Soares leu o artigo do Mário Bortolotto, aqui no Digestivo. Ele está mais bem-educado, quase um gentleman. Raros, eles ainda existem na televisão. O Roberto D'Ávila é de um cavalheirismo capaz de fazer corar qualquer telespectador do Ratinho, um entrevistador que espera pelas respostas do entrevistado -sem ser impassível- quase o ouço dizer: "Deseja você leite, um pingo, no seu quente chá?", como um lord inglês. Paulo Henrique Amorim no programa Tudo a Ver na Record, outro. Desculpando-se por ter que encerrar a conversa -ele faz tudo parecer uma conversa simples e amigável, seja sobre terrorismo internacional ou um comentário casual sobre a Vera Fisher- com uma das lavadeiras de um grupo de música: "a senhora me perdoe, mas preciso agora voltar para aquelas notícias chatas". Na Rede Vida, um canal católico, uns senhores gentilíssimos entrevistam num programa chamado Prazer em Conhecer. Não deve ser muito assistido, pela delicadeza das perguntas. Será e muito por mim, que pretendo aprender boa-educação e traquejos sociais, aquelas coisas que usavam antigamente, nossos avós devem lembrar.

Gente que Brilha
Sílvio Santos foi então a maior das novidades. Depois de tantas apelações: homem armado que invade os estúdios da Márcia Goldschmit; os testes de fidelidade do João Kléber; os monstros sagrados e lados humanos no Faustão; as delícias da caridade televisionada do Gugu; ele chega e usa a fórmula mais antiga da televisão, a mesma do Show de Calouros. O Gente que Brilha é muito simples, sem mais intenções que não a de distrair no seu papel de "um programa quase bobo": piadas, números de circo, desafinados que não cantam muito mas são simpáticos. Nada de mais. A presença de Sílvio Santos é que faz aquilo tudo parecer uma necessidade. Ri tanto... Ri como eu ria em minha infância com o Pedro de Lara, Décio Piccininni e a Sônia Lima. Foi bom revê-los. Foi bom sentir inocência -e ignorância- novamente.

Fora da TV aberta
2004 foi também o ano de Diogo Mainardi. Havia muito um comentarista não era reconhecido -incensado e odiado- por tantos. É incrível como pessoas que não têm grande acesso à mídia falam dele e de suas opiniões. Na fila do banco ouvi dois homens comentando a coluna dele na Veja, um deles pediu a revista emprestada ao amigo que o acompanhava, não iria comprá-la, disse, achava muito cara. Arnaldo Jabor está se roendo de inveja, este é o papel que ele sempre quis, o de "guia dos cegos", mas nunca teve a capacidade (mais uma certa humildade, que, acreditem, Diogo Mainardi tem) necessária. É claro que Mainardi tem lá seus defeitos, como o corte de cabelo e gostar de ler Wunderblogs, mas ninguém é perfeito.

Andréa Trompczynski
São Mateus do Sul, 3/1/2005

 

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